SUMÁRIO

Dados Internacionais de Catalogação
Banca Examinadora
Agradecimentos
Resumo

ADVERTÊNCIA

DOS ENCONTROS E IDENTIFICAÇÕES: As Disposições Teórico-Metodológicas de um Escuta-Dor:
Das Questões e Problemas de Pesquisa
Do Per-curso Metodológico
Do Escuta-dor: O estar-junto com a Docência, Lembranças e Outras Sensibilidades

DA ESCOLA DOS DESTINOS CRUZADOS (1)
NAS MARGENS E NAS BORDAS (primeiro entre-lugar)
Dos Fluxos de Vida Manifestados na Docência da Escola de Educação Profissional: Embaralhando e Tecendo Docências e Existências

DA ESCOLA DOS DESTINOS CRUZADOS (2)
Jogando as Cartas dos Relatos de Vida: Uma Teia de Sur-presas

Primeira Carta - Excl-ama-ções e sur-presas: o ingresso na docência
Segunda Carta - Marcas e vestígios: os primeiros dias de aula
Terceira Carta - Os processos e as teias de indenti-fic(x)ações: que professor sou eu?
Quarta Carta - Nega-ções e int-erro-gações: as turbulências e desestabilizações do ser docente
Quinta Carta - As a-firma-ções de ser docente: as as sustentações éticas

Uma outra leitura das Cartas e do jogo: os rituais do estar-junto
(1) O ritual da torta do aniversariante
(2) O ritual das emoções
(3) O ritual da formatura
(4) O ritual dos Projetos de Conclusão
(5) O ritual da avaliação
(6) O ritual do lugar sagrado do professor
(7) O ritual do prosaico e do poético

Um Outro Jeito de Anunciar e Ver a Formação dos Docentes da Educação Profissional

DA (IN)CONCLUSÃO

NAS DOBRAS E NOS INTERSTÍCIOS (segundo entre-lugar)
Os Devaneios no Mundo da Memória do Tudo

BIBLIOGRAFIA

Dados Internacionais de Catalogação

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­
A111d Arenhaldt, Rafael
Das Docências Narradas e Cruzadas, das Sur-presas e
Trajetórias Reveladas : os fluxos de vida, os processos de
identificação e as éticas na escola de educação profissional /
Rafael Arenhaldt. – Porto Alegre : UFRGS, 2005.
f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-
Graduação em Educação, 2005, Porto Alegre, BR-RS.
Orientadora: Malvina do Amaral Dorneles.

1. Professor – Ensino profissional. 2. Professor –
Identidade – Formação. 3. Trajetória de vida. 4. Ética. I. Escola
Técnica Mesquita. II. Dorneles, Malvina do Amaral. III. Título.

CDU – 371.124:377

Bibliotecária Maria Amazilia Penna de Moraes Ferlini – CRB 10/449

Banca Examinadora

Orientadora:
Profª Drª Malvina do Amaral Dorneles (UFRGS)

Banca Examinadora:
Profª Drª Mérion Campos Bordas (UFRGS)
Profª Drª Naira Lisboa Franzói (UFRGS)
Profª Drª Dinora Tereza Zucchetti (FEEVALE)
Profª Drª Valeska Fortes de Oliveira (UFSM)

Agradecimentos

Deixo-me inundar de um sentimento de gratidão. Sou profundamente grato pelos encontros que a vida promoveu, grato por todos os encontros com pessoas. Pessoas com as quais fiz-me pessoa.
À Profª Drª Malvina do Amaral Dorneles, orientadora e cuidadora, presença permanente de sabedoria, minha mestra e guia, a quem nutro, desde os tempos de bolsista de iniciação científica, singular admiração e identificação. Catalizadora de energia, força e afeto, me fez crer em mim. Obrigado por ter me acolhido, acreditado e apostado nas minhas idéias. Agradeço pela vida ter me presenteado a dádiva do encontro contigo e a possibilidade da partilha de nossas vidas.
À Família, por todos os tempos e espaços de reencontros e fonte de toda potência de vida. Pai Paulo, mãe Eulésia e mana Melissa pessoas com as quais aprendi a olhar, ver e estranhar o mundo. Com eles aprendi a tranfigurar as dores e lágrimas que compartilhamos em gosto e sabor de superar as mais difíceis barreiras de todos os medos avassaladores. Dividindo alegrias, multiplicamos desejos de estar-junto.

Ao querido Pedro, meu afilhado, que me proporcionou o mais singelo e bonito reencontro com a "criança" que somos.

Às Amizades, por todos os vínculos e laços que estabelecemos, por todos os encontros e desencontros que a vida promoveu. Um abraço demorado e carregado de afeto para Alexsandro dos Santos Machado, Augusto Alves, Davi Schmidt, Débora Alves Feitosa, Emílio Araújo, Maria Aparecida Bergamaschi, Rose Madeira, Sandra Andrade e todos os colegas do Núcleo Educação e Gestão do Cuidado.

À "querida" UFRGS, especialmente à FACED e ao PPGEDU, por se configurar num outro l(ug)ar onde a vida acontece e se faz. Estendo abraços ao povo dos diversos tempos do DEDS/PROREXT, Projeto Convivência, DAFE, Biblioteca, RU e tantos outros lugares, projetos, imagens e pessoas. Aos mestres professores do Curso de Pedagogia e do Mestrado, em especial aqueles que acompanharam de perto este trabalho: Dinorá Tereza Zucchetti, Jorge Ribeiro, Mérion Campos Bordás, Nalú Farenzena, Naira Lisboa Franzói, Simone Valdete dos Santos e Valeska Fortes de Oliveira.

Às mais diversas manifestações de docência. Quero sobretudo agradecer aos professores Ademar Lino Kleinübing, José Flori Cardoso Prestes, Ricardo Leal Costi, Ronaldo Bianchin, Sandro Luiz Mattiello e Sidney Kossmann, por aceitarem participar e visibilizarem suas vidas através dos relatos para este estudo. Por terem se disposto a construir juntos, a serem atores e autores desta pesquisa. Ao agradecer tais professores, estendo agradecimentos aos colegas de escola, companheiros de jornada e a todos os professores que dedicam prazer ao seu fazer docente. Agradecer também à Escola Técnica José César de Mesquita, lugar onde muito aprendi e aprendo, lugar de onde nutro as reflexões da vida da escola. Ao agradecer o Diretor Jurandir Damin estendo-o à Mantenedora, e ao abraçar o colega Nereu e as colegas Ana e Devanir, abraço todos os funcionários e amigos que ali fiz.

Ao chimarrão, companheiro fiel de todos os lugares, de cada palavra proferida nesta dissertação. Seiva inspiradora do trabalho solitário de escrita, que aqueceu as madrugadas de inverno e reacendeu as chamas dos dias já quentes de verão.

À Luciane Ely, amor da minha vida, presença generosa, de afeto, cuidado e compreensão. Exemplo de solidariedade e sinceridade, é presença constante de amor... de tantos sonhos e projetos de vida compartilhados. Sou grato à vida e a ti por mais este presente: o encontro com o amor.

Para Lú,
Com todo meu amor e admiração.

Resumo

Este estudo faz uma reflexão da docência na escola de Educação Profissional, a partir das manifestações éticas e dos processos de identificação visibilizados nas trajetórias de vida, no estar-junto e na convivência da escola.

Por meio da escuta do testemunho de vida de seis professores de Educação Profissional, bem como na relação do estar-junto na Escola Técnica Mesquita, a pesquisa contempla uma disposição em ser e estar escuta-dor da docência. Para tanto, são utilizados o Diário de Reflexões e os Relatos de Vida, através de disposições metodológicas como a empatia, a intuição, a escuta e o olhar sensível.

O estudo apresenta e dá visibilidade às dimensões éticas manifestas na escola, caracterizadas na perspectiva da "outra lógica do estar-junto" (Maffesoli). Reflete sobre os processos de identificação e de a-firma-ção do ser docente, na dimensão de se compreender os múltiplos sustentáculos das emoções éticas e das pedagogias manifestas e anunciadas no testemunho da docência.

Enquanto operador analítico-interpretativo, a investigação lança mão de um Baralho de Cartas na perspectiva da compreensão das diferentes e singulares formas e manifestações dos caminhos, dos des(a)tinos e da vida da docência. São apresentadas as imagens e os significados das Cartas, os lances, o jogo, suas leituras e interpretações. Nesse sentido, a escola dos destinos cruzados foi a metáfora encontrada para apresentar a vida da docência, caracterizadas pelas temáticas do ingresso na docência, dos processos de identificação, das éticas que sustentam o fazer e o conceber da docência, das desestabilizações e da negação da docência, dos processos de mobilização e a-firma-ção, bem como dos rituais do estar-junto na escola, vislumbrando um outro jeito de ver e compreender a formação de professores.

O texto convida o leitor a sentar-se na mesa circular da pesquisa, juntamente com Maffesoli, Calvino, Maturana e os professores de Educação Profissional - atores e autores dos relatos de vida - para um inusitado encontro na perspectiva de se compreender a forma e o jeito que a docência se diz, se narra, se manifesta, se lembra.

Palavras-chave: Educação Profissional, Docência, Éticas.

ADVERTÊNCIA

Admirai-nos, surpreendei-nos
Algumas respostas podem ser encontradas aqui
Elas dependem de cada um, de todos nós, inclusive das letras enfileiradas
Esquecemo-nos um pouco dos livros, dos autores
Aqui você não vai encontrar um manifesto
Também não vai encontrar uma crença
Talvez isso aqui não seja nem ciência
(pelo menos aquela clássica com sujeito e objeto)
Isso é só um fluxo, um entrecruzamento
Encontros de vida
Quiçá contenha um pouco de poesia
Então aí vai um pouco de histórias de professores e da minha inclusive.

Rafael Arenhaldt
Outono de 2005.

Vou começar contando uma história. Faça o leitor e o escuta-dor sua própria apreciação. Quem escuta a história, enquanto um escuta-dor, se permite sentir e apreciar o sabor e a dor de quem a conta. Apreciar, saborear, sofrer e sentir junto, compartilhar as palavras e um pensamento que contornam sentidos de vida.

A história que conto é de vida: da minha, da implicação com a pesquisa, de como foram se configurando, se gestando e se produzindo os nexos de uma investigação, da busca das sur-presas e dos fluxos de vida da docência na escola de educação profissional.

Aventurei-me na busca e na compreensão da docência. Mergulhei na escola para perceber, para captar os fluxos de vida da docência na escola de educação profissional. Essa escola é o Mesquita[1] e os docentes que nela atuam. Utilizo nesta aventura o diário de reflexões e os relatos de vida, através de disposições metodológicas[2] como a empatia[3], a intuição[4], a escuta e o olhar sensível.

O gestar da pesquisa e o gestar-se na pesquisa, revela sobretudo um processo de construção de um pesquisador em formação que é também coordenador pedagógico. Trata-se de uma passagem, um deslize para outras identificações como assunção de estar pesquisador em formação. Quicá possam, o coordenador pedagógico e o pesquisador, fazerem-se juntos, mesclando-se como um. E este sou eu: um coordenador pedagógico que se aventura a pesquisar, a investigar, para um implicar-se e embaralhar-se no outro. "Esta é uma tensão que acompanhará o pesquisador" (BEDIN, 2002, p. 9)

Nesse gestar da pesquisa e do gestar-se na pesquisa, me permiti fazer outro olhar, outra escuta. Um olhar e uma escuta que deixa-se surpreender, sem um dever-ser. O olhar mirado e proxêmico, é um olhar adjetivado, não é qualquer olhar, é um olhar sensível, erótico e afetual. Enquanto pesquisador, imbuído por uma razão sensível (MAFFESOLI, 1998) na perspectiva de dar evidência ao testemunho da docência e ao registro denso do estar-junto, permiti-me sur-preender com o dado mundano, com a docência que se mostra, com a vida que é.

O lugar de onde falo é de dentro da Escola. Da Escola de Educação Profissional. É de dentro que olho, e é o que se mostra de dentro que focalizo. É dali que procuro captar o que se manifesta, o que se mostra, o que se epifaniza[5].

O pesquisador quer acertar o foco, ver coisas que na banalidade do dia-a-dia não se via. O pesquisador quer ver melhor, quer ver os detalhes, traçar os contornos, compreender as lógicas internas que sustentam o estar-junto e aquilo que liga, gruda e adere na docência. Quer ver e mostrar o que acontece na escola e o que constitui a docência na educação profissional. É uma postura muito mais contemplativa do que ativa, esta última própria do dever-ser. "(...) é preciso tomar a vida pelo que ela é" diz Maffesoli (1998, p.46). É um conhecimento erótico, fusional, uma sociologia acariciante[6] no sentido de perceber o que tem de fantástico e surpreendente, o que tem de banal e fútil na docência. De permitir-se surpreender com as histórias e memórias contadas e ressentidas, com os fluxos narrativos epifanizados na voz e no estar-junto da docência. De deixar-se supreender com os sentidos de (in)permanência e daquilo que impregna na docência. De captar os (dis)sabores, os (des)gostos e a (des)graça da docência. De capturar o que (des)motiva, (e)motiva, (des)mobiliza e o que (des)anima na docência.

É a partir das instigações do coordenador que o projeto de pesquisa se inicia, mas que vai se metamorfoseando. O pesquisador vai mudando e novas perguntas são apresentadas. Novas questões se colocam e o olhar sobre o que pesquisar também muda. As perguntas vão mudando porque o olhar vai mudando: esse é o processo de gest(aç)ão da própria pesquisa, são os tempos e os ritmos de quem se aventura neste processo de ser pesquisador.

Não me propus realizar um estudo sobre a formação ideal do docente na educação profissional. Não se trata de saber se precisa de formação pedagógica ou superior para o melhor desempenho de sua atividade. Poderia fazê-lo, mas não é o foco desta pesquisa. Poderia também perguntar: "Quem é o docente da Educação Profissional? Qual a sua identidade?". Poderia caracterizar a docência de diferentes formas, a partir das mais diversas máscaras e faces.

É de dentro destas questões que se gesta um novo olhar, ou da descoberta de uma nova qualidade do olhar[7] como diz Baudelaire (1988). Não um olhar fechado, determinado a priori, mas um olhar aberto e mirado ao novo.

"É preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outro meio de conhecimento" (ALMEIDA, 1998, p.24)

O trabalho, o exercício durante todo o percurso da pesquisa foi, de certa forma, o olhar na perspectiva de romper com a dicotomia razão e sensibilidade, e olhar o sujeito professor, com sonhos, desejos e projetos de vida. Ouvir sua voz, compreender seus gestos, refletir sobre sua atividade cotidiana e sua formação, sua trajetória de vida, sua relação profissional dentro da instituição escola, que é afetado e afeta a escola, que todos os dias lá está: esperançoso ou não, feliz ou não, comprometido ou não, mas lá está.

Escrever a dissertação nesta perspectiva é um desafio. Respeitar[8] a voz da docência, sem negligenciar a vida do narrador e nem reduzí-la a análises simplificadoras, é pressuposto epistemológico desta pesquisa. Fazer ciência e respeitar a vida manifestada como uma obra de arte e poesia é o que me proponho ao me aventurar nesta jornada com o outro, como escuta-dor, como pesquisa-dor.

Quem convido para sentar-se na mesa da pesquisa? Quem faz companhia nesta a-ventura[9] no oceano do conhecimento, do pensamento e das histórias da docência? Quem partilha e a-companha os des-vios e os des-caminhos da pesquisa? Quem partilha da a-ventura, a deriva, pelos labirintos da vida da docência? Com quem dialogo, escuto, escrevo e con-verso (dar voltas com) nesta empreitada da pesquisa?

Além dos docentes, autores e atores deste trabalho, de Maffesoli, de Calvino, agregam-se e incorporam-se novos participantes na mesa da pesquisa, que embriagam o pensamento e que potencializam o espírito, ou seja, a poética e a arte de Benjamim, Nietzsche, Baudelaire e outros. Trata-se da "vida como uma obra de arte", onde o "saber noturno" (HARA, 2004) pulsa em comunhão com um jeito de fazer ciência e conceber a pesquisa.

Sentir e experimentar a possibilidade trabalhada por Benjamin e Nietzsche de aproximar ciência com poesia, pesquisa com arte e o trabalho do pesquisador com o do artista. Fazem parte então dos dispositivos, instrumentos e do olhar do pesquisador todos artifícios próprios do artista como o belo, a beleza, a estética, o imaginário, o onírico[10].

"O pensamento é uma arte; o conhecimento que produzimos é uma tela que expressa nossas idéias; o ser do conhecimento (...) é um artesão que bricola, de forma singularizante, os saberes à sua volta" (ALMEIDA, 1998, p.21-22)

A cena visibilizada é a da mesa circular da pesquisa onde nos encontramos ao entorno. Nesse sentido, num primeiro momento, denominado "Dos encontros e identificações", apresento as impressões, sabores, sensações, emoções do pesquisador em referência ao evento da escuta da docência e suas relações com a forma e jeito que a docência se diz, se manifesta, se lembra. É uma reflexão empírica, teórica e metodológica da aventura de escutar a docência na escola de educação profissional. Além disso, ao final deste item, convido o leitor a passear pelas "margens" e "bordas" da dissertação, um entre-lugar onde apresento os atores e autores a partir do seu próprio testemunho.

Num segundo momento, com o título: "Da Escola dos destinos cruzados"[11], inspirado em Calvino, disponibilizo os relatos, a vida, os caminhos e os destinos da docência, através de um baralho de Cartas, onde apresento as imagens e os significados das Cartas, os lances, o jogo, suas leituras e interpretações. Neste item, apresento os docentes, os atores e autores dos relatos de vida, a partir da voz pronunciada, e articulada à elaboração do pesquisador no que tange às temáticas do ingresso na docência, dos processos de identificação, das éticas que sustentam o fazer e o conceber da docência, das desestabilizações do ser docente, da a-firma-ção da docência, dos processos de mobilização, da negação da docência, entre outros. É neste item também que faço uma leitura dos rituais do estar-junto na escola e reflito sobre a formação dos docentes da Educação Profissional.

Como fechamento de escrita, de um lado, faço algumas reflexões (in)conclusivas e, de outro, convido o leitor a freqüentar as "dobras" e os "interstícios" da dissertação, ou seja, um outro entre-lugar intitulado "Os Devaneios no Mundo da Memória do Tudo", uma espécie de devaneio literário situado na dobradura da Bibliografia.

É importante considerar os limites do olhar e da escuta, do tempo e do lugar de percepção e interpretação por parte do pesquisador do societal. A posição de onde olhamos e escutamos tem implicações na maneira como percebemos e interpretamos os fenômenos que nos cercam. Isso - um escuta-dor e um olha-dor do outro e do mundo - é preciso ter claro! Além disso, é necessário ter presente que: quem narra, quem conta uma história, também fala de um lugar, fala de uma posição ímpar, e que, por isso mesmo, afeta a forma como se vê, se percebe e se conta. Cabe ao pesquisador a postura de vigilância do olhar daquilo que se mostra e da escuta que é possível captar.

Nesse sentido, embora reconheça os limites das condições interpretativas e perceptivas que estamos envoltos na interação e na dinâmica própria da socialidade, destaco a potencialidade de uma investigação sustentada na perspectiva da razão aberta e sensível (MAFFESOLI, 1998). No entanto, é preciso dizer que, em virtude da abertura e das múltiplas possibilidades interpretativas, o trabalho analítico requer do pesquisador sucessivas e permanentes escolhas e decisões dos caminhos da pesquisa, ou seja, no momento da escolha por um caminho necessariamente abdica-se de outros possíveis. Esta é uma tensão permanente que acompanha o pesquisador.

"Como o mar pleno da interpretação está aberto, a todo momento é necessário decidir qual o rumo a tomar. Essa é uma angústia típica dos artistas que, por exemplo, ao eleger uma cor, uma nota musical, uma rima têm que abdicar de todas as outras possibilidades." (HARA, 2004, p. 232-3)

E cá estou, fazendo algumas escolhas no oceano do conhecimento, decidindo rumos de pensamento e, por isso mesmo, abdicando de tantas outras possibilidades de dizer as coisas da vida, do mundo e da educação.

[1] A Escola Técnica José César de Mesquita, localizada na Zona Norte de Porto Alegre, RS, mantém quatro cursos técnicos na área da indústria e informática. Tem como Mantenedora o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metal-Mecânica e de Material Elétrico da Grande Porto Alegre.
[2] As disposições metodológicas que aqui nos referimos dizem respeito a perspectiva de compreender que as dimensões sensíveis, intuitivas, emocionais e afetuais, "coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, (...) mas vão tornar-se alavancas metodológicas que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais" (MAFFESOLI, 1998, p.53)
[3] Empatia: 'tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa'. 'Estado de espírito no qual uma pessoa se identifica com outra, supondo sentir o que ela está sentindo'. (Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2003).
[4] Para esta compreensão da intuição enquanto disposição metodológica ver Maffesoli (1998, p.130-146), na medida em que ela é um ato de conhecimento, "um vetor importante de conhecimento do vitalismo em ação nas nossas sociedades". Trata-se de uma sensibilidade intelectual no qual o pesquisador se apresenta como um "farejador social" a captar e perceber aquilo que está nascendo sob os nossos olhos e ouvidos.
[5] Epifania: 'aparição ou manifestação divina' (Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2003).
[6] Trata-se de uma perspectiva de conhecimento onde sujeito e objeto fundem-se, mesclam-se, acariciam-se mutuamente, ou como diz Maffesoli (1998): "O observador social [é] parte integrante do objeto estudado, desenvolve um saber puro, um conhecimento erótico. Coisas que induzem a uma sociologia acariciante." (p.47)
[7] No que tange a esta nova qualidade do olhar, o autor se refere de forma ilustrativa ao olhar intenso da criança que “vê tudo como novidade; ela está sempre inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor.”(BAUDELAIRE, 1988, p.168)
[8] Etimologicamente, a palavra respeito vem do latim respectare (CUNHA, 2003, p.679), isto é, re-espectar, re-ver, re-olhar.
[9] Ventura: 'fado, destino; sorte, fortuna'. (Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2003).
[10] Cabe ressaltar que a literatura fantástica de Italo Calvino tem lugar central neste trabalho, já que concebo suas obras literárias como referência para o tratamento e para a perspectiva metodológica-interpretativa das narrativas de vida da docência, na dimensão de aproximar a pesquisa e a educação da literatura e da arte.
[11] Parafraseando o título de uma das obras-referência deste estudo: "O castelo dos destinos cruzados" (CALVINO, 1991). Nesta obra, Calvino embaralha e entrelaça as narrativas e destinos de personagens, revelando-nos as múltiplas e inesgotáveis possibilidades, sentidos, leituras e interpretações de cada história. É a partir das cartas de Tarô colocadas umas ao lado das outras e jogadas sobre a mesa de um castelo que as personagens contam suas histórias e narram suas aventuras e desventuras. Cabe destacar que, nesta pesquisa, não faço uso e referência apenas do título da obra de Calvino, mas sobretudo enquanto um potente operador analítico-metodológico dos relatos de vida da docência no sentido, inclusive, da metáfora do uso de Cartas para dispor e visibilizar, embaralhar e entrelaçar as múltiplas histórias e trajetórias da docência na educação profissional.

DOS ENCONTROS E IDENTIFICAÇÕES:

AS DISPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DE UM ESCUTA-DOR[1]

"Sou uma inteireza e não uma dicotomia. (...) Conheço com meu corpo todo, sentimento, paixão. Razão também." (FREIRE)

Das Questões e Problemas de Pesquisa
Do Per-curso Metodológico
Do Escuta-dor: O estar-junto com a Docência, Lembranças e Outras Sensibilidades

[1] Utilizo a palavra escuta-dor, assim como pesquisa-dor, enquanto sujeito da escuta, o escutador da vida da docência e o pesquisador da escola, bem como no sentido daquele que escuta a dor do outro, as dores da docência.

Das Questões e Problemas de Pesquisa

"Eu sou todos; todos são eu. Turbilhão." (BAUDELAIRE, 1981, p. 15)

Apoio-me na perspectiva de Maffesoli sobre a noção de processos de identificação e da outra lógica do estar-junto, para sustentar um olhar sobre o docente da educação profissional distinto do postulado identitário. Isto é, de não compreender o docente apenas na dimensão de uma identidade fixa própria do dever-ser, mas fundamentalmente compreendê-lo naquilo que se mostra nos relatos e nos fluxos de vida, onde as escolhas, opções, des(a)tino, circuntâncias e contigências da permanência na docência se epifanizam.

É de mostrar sem julgamento de valor totalizante aquilo que compartilhamos, que tecemos juntos na escola e que se manifesta nos fluxos de vida da docência, no sentido de compreender e descrever as lógicas internas da docência na escola de educação profissional, aquilo que sustenta e ampara, nega, a-firma, identifica e gruda na docência, seus processos de identificação, suas teias.

Maffesoli (1996) destaca a saturação de uma identidade estável e garantida por si mesma (p.302), na perspectiva de uma passagem progressiva da identidade em direção à identificação. O processo de identificação tem um caráter escorregadio, nebuloso, transitório, instável, fluído e por isso difícil de captar suas manifestações. Trata-se, diz o autor, de um processo que enfatiza a dificuldade de delimitar seus contornos, ou seja, de definir com clareza sua constituição e seus traços, que muda de forma - caracteriza-se pela liquidez, fluidez e viscosidade - e é complexo.

A pessoa tem identificações configuradas na relação estabelecida com o outro, na convivência, no estar-junto, bem como através das identificações nas múltiplas dimensões da própria pessoa. De um lado, as diversas metamorfoses que constituem um mesmo indivíduo, ou seja, cada um, ao longo de sua existência, muda diversas vezes. De outro lado, num período determinado da existência, o mesmo indivíduo não é homogêneo a si próprio. Ele representará diferentes papéis ou uma multiplicidade de personagens.

Trata-se aqui da necessidade de questionar este lugar distinto de um 'eu' que tem a força e a estrutura de um ente senhor de si ou todo poderoso, definido, exclusivo e singular. Ao contrário, este 'eu' é constituído e caracterizado na pluralidade das relações com o outro, com o mundo e consigo mesmo, dos des(a)tinos, das circunstâncias e das contingências de vida.

É na convivência, no estar-junto, na relação com o outro, nas reuniões, nos encontros, nos agrupamentos, na efervescência festiva, ou seja, é no momento passado com outros, que estabelecemos um pertencer múltiplo (MAFFESOLI, 1996, p. 315). Trata-se de um processo de identificação viabilizado por uma outra lógica de estar-junto, onde atração, agregação, pertença, partilha, socialização, vínculo, aliança, ligação ao outro, corpo coletivo, são suas palavras-chave.

Nesse sentido, o problema da pesquisa e a questão que direcionou meu olhar junto aos docentes da escola de educação profissional foi:

“Como as éticas e os processos de identificação se manifestam nas trajetórias de vida e no estar-junto dos docentes da educação profissional?"

Que lógica é essa que quero ver na escola de educação profissional? É possível de se ver essa outra lógica do estar-junto? Como ela se mostra, se manifesta?

Maffesoli assinala a implantação de uma outra lógica societal que se encontra em status nascendi no cotidiano das relações, naquilo que é religante ao outro, no afeto, no que move e comove. De que é possível de se sentir junto com, de sentir em comunhão. Destaca que é possível falar dela, não necessariamente explicá-la, mas fundamentalmente captar o fluxo e o lençol freático subterrâneo da vida, descrevendo-lhe os contornos e constatar suas características fundamentais - sua lógica interna -, o que está em esboço sob os nossos olhos. Pergunto:

- Como se manifesta esta lógica do coração na escola de educação profissional, protagonizada pela contingência do ser docente?
- O que se mostra dos efeitos de interações fundadas na lógica do coração?
- Como, porque e em que ritmo bate o coração da docência?
- Qual o ritmo da voz, do canto e da música na docência?
- O que cola na es-cola?
- O que, dia após dia, nos liga e nos conecta à escola?


Utilizo a noção de outra lógica de estar-junto de maneira articulada com a perspectiva da passagem da identidade à identificação. Não dissocio as duas noções. Por que? Porque entendo que a chave da compreensão se encontra na perspectiva de entender que o sujeito não é fixo, único, senhor de si, próprio do postulado identitário ou de sua couraça racionalizante e individualizante, e sim em compreendê-lo nas suas múltiplas dimensões e identificações, que é coletiva, que é constituída com o outro, na convivência e no estar-junto, uma outra lógica do estar-junto. Partilhando a vida, sentindo, vibrando e se emocionando junto (homo esthéticus). Essa obra de arte que é a vida, que é constituída e vivida com, numa dimensão comunitária, da emoção partilhada.

"O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte." (NIETZSCHE)

Como afirma Maffesoli (1997, p. 268): "Tem-se, claro, algumas dificuldades para apreciar essa mudança. Isso exige uma subversão teórica". E porque dar evidência aos eventos e situações múltiplas que se manifestam no cotidiano da escola? Por que mostrar as práticas minúsculas que constituem o dia-a-dia, os momentos festivos e afetivos?

Para Maffesoli (1996, p. 27) eles "não podem mais ser consideramos como elementos sem importância ou frívolos da vida social. Enquanto exprimem as emoções coletivas, eles constituem uma verdadeira 'centralidade subterrânea', um irreprimível querer viver, que convém analisar" .

Eles são plenos de sentido, mesmo que se esgotem em si mesmo, sem aquela projetiva utilidade da perspectiva racionalizante e totalizante.

Pergunto, embalado pelas palavras de Maffesoli:

- O que é religante?
- O que une ao mundo que cerca, o que une aos outros que rodeiam?
- O que é o vetor de partilha e comunhão na docência?
- O que é pólo de atração, vínculo e nexo na escola?
- O que suscita tal adesão e enlace?


A metáfora é da teia, da rede que captura; desses fios que tecem o sentido do 'fixar-se' na docência; que amarra, que ata com 'nós' (do estar-junto) esse 'ser' e estar docente; os 'nós' que prendem e que nos surpreendem; que compreendem o estar-com-nós-junto, num fluxo, num movimento que nega, afirma, reafirma, exclama, interroga a docência; num fluxo que cria nexos, interjeições e contingencia as reticências da vida.

É a partir disso que tenho entendido a noção de 'as teias de identi-fix(c)ações da docência'; de entrar em conexão com a vida, com a "melodia do ritmo social" (MAFFESOLI, 1995, p.13), com a música da docência; do encantamento de ouvir a história da docência, de estar em permanente contato, a captar a mensagem da voz e do olhar, e assim pôr em operação "uma racionalidade aberta e plural que capte os sons, as cores e os odores" (MAFFESOLI, 1998, p. 56); de se ligar, se conectar com as histórias, que viabilizam encontros, bons encontros, numa outra lógica de estar junto; de contar e ser um escuta-dor de histórias.

O que quero, enquanto pesquisa-dor-da-vida-e-da-escola, é prestar atenção na voz da docência. Quero fazer o inventário dos hieróglifos pelos quais a docência se diz e se vive.

- Quais são as histórias da docência?
- Quais as histórias que os docentes assumem, afirmam e exclamam?
- Quais histórias contadas são identificações em modelos, referências, imagens para a docência?
- Até que ponto a docência e a con-vivência na escola possibilitam e são responsáveis por produzir imagens e lembranças (e esquecimentos) de dor, de desgosto, de paixão e de cheiros, gostos e vozes?
- Quais identificações vão para dentro de si, que são in-corporadas, que são assumidas pela docência?
- Quais histórias aglutinam a docência?
- E quais histórias a negam?


A ênfase aqui é no coletivo, no conjunto e naquilo que se tece junto e que compõe as malhas e a melodia da docência; dos fios que evocam sons e sentidos; daquilo que é tecido junto: que é complexo. Trata-se de captar os contornos e os traços que viabilizam as atrações e as agregações, que une, que funde, ata e amarra os fios da teia da docência: as teias de identi-fic(x)ações.

Do Per-curso Metodológico

"Tornar mais visível e explícito o percurso da pesquisa, eis o desafio importante e tão bem destacado pela Banca Examinadora. (...) Estou me dando conta que um dos "nós" dessa "teia" da pesquisa (e essa é uma metáfora potente para compreender o processo de sua construção) é (...) sobre a importante explicitação do percurso que a pesquisa vai tomando, seus percalços, surpresas, impressões, reflexões, dificuldades, encaminhamentos, etc." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004).

Inicio este item com uma citação do Diário de Reflexões, por mim escrito poucos dias depois da Defesa da Proposta de Dissertação, onde um dos aspectos destacados pela Banca Examinadora foi a importância de se explicitar o percurso da pesquisa. O dispositivo ou o instrumento encontrado para tal tarefa foi o Diário de Reflexões que foi adotado com o intuito de refletir sobre as dimensões empíricas, teóricas e metodológicas da pesquisa. Por quais trilhas e estradas me aventurei? Por quais mares e oceanos naveguei? Quais foram os des-caminhos da pesquisa?

"Um DIÁRIO DE REFLEXÕES empírico, teórico e metodológico para dar conta de forma mais ampla, incluindo o cotidiano, o campo empírico, mas também que dê conta de reflexões e impressões metodológicas, das trilhas, caminhos, encruzilhadas e escolhas, bem como das dimensões teóricas que se relacionam com o olhar, com a metodologia e os dados empíricos." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004)

Permiti-me percorrer alguns desvios. O desvio como um per-curso, como para Benjamin (apud Gagnebin, s/d, p.87), "Método é desvio". Permiti-me caminhar acompanhado de um certo despropósito, deixando-me levar com a pesquisa e suas sur-presas. Embora tendo um propósito como este de escrever a dissertação e realizar uma pesquisa, exercitei uma forma de pensamento, de leitura e de interpretação distante de uma perspectiva segura de si mesma, com uma meta e alvo claros, bem como de um itinerário rigidamente consolidado a dar seus passos certeiros. Procurando despir-me de convicções e intenções asfixiantes, concebidas de antemão, tracei contornos e leituras daquilo que me foi aparecendo, buscando assim novos significados e interpretações, procurando contemplar e mostrar os sentidos por mim elaborados e construídos. Não quis percorrer o caminho da meta definida a priori, pois esta seria simplesmente traçar uma linha reta, o caminho mais curto entre dois pontos.

"(...) velejar 'à deriva no rio da existência' (...Roberto Piva), do que serem maquinistas de um comboio com um destino certo, já que os trilhos da estrada de ferro não permitem desvios, mudanças de rotas ou saltos. (...) navegar lendo as rotas cravadas no céu interior, do que se deixar levar pelas paralelas de ferro que não chegam a lugar algum." (HARA, 2004, p. 101)

Reconheço, percorri alguns desvios e o Diário de Reflexões permitiu o "despropósito" da escrita: o desvio do pensamento. Parafraseio "Deixa a vida me levar" de Zeca Pagodinho, me inspiro, me atrevo e me atiro, Deixa a escrita e o pensamento me levar, na perspectiva da renúncia de um porto seguro e previsível, trazendo como ventura a possibilidade de saborear o pensamento em sua complexidade, desgarrado de formas de se pensar a priori.

É preciso considerar, no entanto, a diferença entre rigor e rigidez. Não entendo que fazer ciência seja sinônimo de rigidez, antes seu contrário, ou seja, é desenvolver um olhar aberto e sensível ao novo, ao inusitado e, porque não dizer, ao invisível, sem querer tornar o mundo decifrável e visível, submetendo a tudo e a todos à lógica da razão racionalizante. Refiro-me à possibilidade de fazer ciência e desenvolver uma metodologia empática, sabedora da subjetividade do pesquisador[1], intuitiva, acariciante e nem por isso não recheada de paixão, vigor e rigor. Ou como diz Leminski (1999, p. 45): "Sem abdicar dos rigores da linguagem precisamos meter paixão em nossas constelações". Ou como diz Maffesoli (1995, p. 104) "um pensamento que saiba aliar o rigor da atitude científica, ou pelo menos acadêmica, e a sensibilidade colhida nas próprias fontes da vida."

Então, sem abdicar dos rigores, foi necessário ampliar e lançar mão de outros e diversos recursos para elaborar o caminho e o percurso metodológico, a interpretação e a análise, no sentido de dar conta das questões e do problema que o estudo foi apresentando à medida em que fui me aprofundando na pesquisa.

Assim sendo, para dar conta das questões e do problema de investigação - como se constituem e se manifestam os processos de identificação e as éticas na docência da educação profissional - o estudo foi desenvolvido procurando as marcas e os vestígios que possam capt(ur)ar tais manifestações no estar-junto e no relato da docência.

Durante a pesquisa, busquei o apoio e a contribuição de vários autores. Maffesoli e Maturana me auxiliaram no aprofundamento das noções de processos de identificação, do estar-junto e das éticas, bem como na perspectiva epistemológica da pesquisa, quanto aos fundamentos de um jeito de fazer ciência. Além deles, a presença de outros tantos autores foram indispensáveis no sentido de ampliar o meu olhar de pesquisador, afetando sobremaneira o que considero como os des-caminhos da pesquisa. Entre tantos, Calvino, Nietzsche, Benjamin, Baudelaire, Morin, Rancière, Somé, Hara. Sobre os enfoques da docência na educação profissional, tive certa dificuldade em encontrar estudos que a tratassem na perspectiva que trato. No entanto, autores como Tardif, Ferreira e Oliveira foram importantes. Já sobre a perspectiva metodológica, a literatura vasta sobre as histórias e relatos de vida, imaginário e memória, a partir de Bosi, Benjamin e Oliveira foram fundamentais.

Porém, a fonte principal da pesquisa foram as entrevistas e relatos de vida dos docentes, gravados, transcritos e repassados aos mesmos para a respectiva correção, exclusão e acréscimo, bem como o Diário de Reflexões alimentado sistematicamente no cotidiano da escola e das leituras realizadas.

"Entendo que esta configuração enquanto teia que será tecida junto, em sua integralidade, considerando questões empíricas, teóricas e metodológicas possibilitará, enquanto prática de pesquisa, um novo jeito de tecer o trabalho analítico, tornando mais explícita as trilhas e caminhos da pesquisa. É, de fato, um movimento complexo, pois é tecido junto: o empírico, o percurso teórico-metodológico com o trabalho analítico". (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004)

Situamos nossa abordagem na perspectiva de um olhar que procura ver a complexidade dos fios em que está tecida a vida, seu ciclo, seu movimento.

"O desafio do pesquisar no movimento é que o pesquisador não olha um tecido pronto, procura aproximar-se do movimento em que o tecido vai sendo feito. Mergulha na multiplicidade dos fios em movimento, buscando compreender a trama que vai sendo urdida. Como olhar desse lugar do 'em se fazendo' (...)?" (Fontana, 2000, p. 70-1)

Nessa perspectiva, vale salientar que o estudo procurou levar em conta não só o corpus produzido pelo evento da entrevista, ou seja, um texto produzido na entrevista-diálogo, mas também as diferentes sensibilidades, pistas[2] e caminhos reflexivos que fui evidenciando e mostrando no Diário de Reflexões. Nesse sentido, busquei captar o dito, o anunciado e o não-dito, o não-anunciado, isto é, não apenas o relatado em si mas o que ia para além dele mesmo, procurando perceber inclusive os silenciamentos, as reticências. Busquei potencializar um olhar investigativo das ações, das posturas, das concepções, dos processos e das lógicas que fundamentam as práticas e trajetórias docentes ancoradas no ético, no estético, no amoroso, no afetivo, no generoso.

No que tange à entrevista-diálogo, enquanto evento e ritual de escuta da vida da docência, o primeiro passo foi estabelecer um contato prévio com cada professor, explicitando os objetivos e procedimentos da pesquisa, no sentido de obter seu consentimento e disponibilidade para a realização das entrevistas e relatos. Assim sendo, identificado o grupo de seis professores, e obtendo-se o consentimento informal para a realização das entrevistas, procedi aos agendamentos, tempos e locais propícios para a efetivação do evento do relato, como revelam abaixo dois fragmentos do Diário de Reflexões:

"Marcada na semana passada e confirmada ontem, a entrevista aconteceu na casa do próprio professor depois do seu convite para conhecer o seu apartamento novo. Marcamos a entrevista para as 9hs da manhã (...). Sentamos à mesa próximos da sacada, um lugar muito aconchegante e propício para um bom bate-papo e diálogo. Liguei o gravador e recomeçamos a conversar, agora mais dirigida pelo roteiro da entrevista. Expus o tema (...), os procedimentos e os objetivos dessa entrevista e da pesquisa. Imediatamente começou a falar e se colocando de pronto disponível para um bom diálogo". (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 1º de dezembro de 2004).

"(...) fomos procurar um lugar calmo para a entrevista. Estava muito quente e achamos que uma sala de aula seria ainda mais quente, além do agito dos alunos do ensino fundamental e médio dos jogos de Educação Física que estavam acontecendo na escola. Por isso, fomos no espaço nos fundos da escola, denominando "escolinha", que está parcialmente desativada. Pegamos duas cadeiras e uma classe e sentamos à sombra no pátio, no gramado, embaixo das árvores, isolados do barulho, com som de passarinhos ao fundo. Levei, para acompanhar a nossa conversa, o chimarrão, fiel companheiro e próprio para uma boa conversa e um bom diálogo" (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 23 de novembro de 2004).

Geralmente em local calmo, com tempo suficientemente disponível para um diálogo, as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas[3]. Na medida em que as transcrições eram concluídas, as mesmas eram enviadas aos respectivos docentes - de forma impressa ou por correio eletrônico - para que procedessem às correções e alterações dos relatos.

Os professores, viabilizadores das vozes e dos relatos de vida[4], que configuram o grupo são: Ademar Lino Kleinubing, 50 anos; José Flori Cardoso Prestes, 51 anos; Ricardo Leal Costi, 32 anos; Ronaldo Bianchin, 34 anos; Sandro Luiz Mattiello, 35 anos e Sidney Kossmann, 60 anos. Todos os docentes envolvidos na pesquisa estão cientes e autorizaram o uso das palavras e relatos de vida pelo pesquisador através da assinatura junto ao Termo de consentimento livre e esclarecido da pesquisa.

Nesse sentido, foram realizadas seis entrevistas. Cabe salientar que, no Projeto de Dissertação, optei, provisoriamente, por oito professores. Com o desenrolar da pesquisa e, fundamentalmente, com a riqueza dos testemunhos e dos relatos de vida que fui escutando, transcrevendo e refletindo, entendi que as questões centrais da pesquisa estavam sendo suficientemente esclarecidas; que cada professor entrelaça a história da sua vida de forma singular; que, se outros professores se incorporassem ao estudo, possivelmente novas abordagens e outros sentidos seriam estabelecidos no processo de confecção da análise investigativa; mas que, considerando o que me propus neste estudo, ou seja sua delimitação e os limites de tempo, a não realização das outras duas entrevistas em nada prejudicaria o percurso e a conclusão da pesquisa.

Assim sendo, no que tange às entrevistas e aos relatos de vida da docência, viabilizamos um percurso e um processo de pesquisa, no qual assim como Fontana (2000, p. 78):

"ouvi demorada e repetidamente as fitas, transcrevi nossos dizeres e tive a liberdade de selecionar parte de nossas palavras e compor com [os docentes] o texto que se segue. Os recortes foram meus, ainda que antes de sua divulgação tenham sido lidos e autorizados por suas personagens. Esses recortes ajudaram-me a delimitar o âmbito do estudo e seu alcance."

Simultaneamente ao processo de realização, gravação e transcrição dos relatos de vida, escrevi um volumoso Diário de Reflexões, que serviu de catalisador e articulador das questões que emergiram no caminhar da pesquisa. Um diário que tecia, simultaneamente, os fios das dimensões empírica, teórica e metodológica.

Concluído tal processo, um tanto trabalhoso, mas fundamental e imprescindível para a constituição de um corpus próprio para tal estudo, iniciei o procedimento de análise mais sistemática dos relatos, considerando como vestígios e marcas as concepções, afirmações, negações, adjetivos, expressões, imagens e referências identificadoras e indicadoras das manifestações éticas e dos processos de identificação da docência.

Procurei, assim, discutir e problematizar os diferentes sentidos presentes nesse material. Tentei, nos relatos e nas vozes dos docentes, captar os mais diversos sentidos dados ao ser, estar e permanecer na docência, bem como aos processos pelos quais esses docentes se identificam, se constituem e se tecem. Busquei então, o modo pelo qual cada docente se relata, se conta e se afirma enquanto professor.

Na etapa seguinte, me preocupei em responder às questões do estudo. Para tanto, enquanto procedimento analítico e interpretativo, uni às marcas manifestadas nos relatos de vida dos docentes, a reflexão elaborada no Diário de Reflexões, articulada àquelas oriundas da literatura e das discussões com colegas e orientação, as quais efetivamente, contribuíram no sentido de compreender as dimensões éticas e os processos de identificação, manifestos e anunciados nos testemunhos dos docentes e no estar-junto da docência da educação profissional.

Para a entrevista elaborei um roteiro, um conjunto de questões, guias provocadores do diálogo-entrevista. O guia das entrevistas se configura como um mapa da jornada, constituído a partir das questões temáticas, objetivos e problema de pesquisa. A partir da confecção do mapa da jornada, convidei seis professores a sentar em torno da mesa da pesquisa. Com cada professor uma jornada foi vivida, com cada professor um itinerário, um percurso, um caminho foi trilhado. Cada qual, a partir do mapa, seguiu seu próprio curso. Cada qual visitou lugares e espaços da sua história, vida e memória manifestadas no relato, em entre-vistas. Alguns, de forma singular e peculiar, se detiveram com mais detalhes em determinados pontos do mapa da jornada, outros reviveram e relembraram outros aspectos de sua vida, mas todos - sempre - regados e recheados de emoções, manifestadas pelo ato da lembrança de si: os "nós" na garganta. Alguns professores visitaram lugares com o sabor e a emoção da lembrança, outros silenciaram. Para alguns o sabor parecia ser de prazer, para outros de ar-dor ou de amar-gor.

"O roteiro aberto preparado no espírito da pesquisa tem possibilitado de fato um diálogo, uma conversa, às vezes interrompida e redirigida pelo pesquisador, às vezes aberta, solta, onde as lembranças puxam novas lembranças de um tempo de outrora, revividos juntos no momento do diálogo, com detalhes, relatos, convicções, dúvidas, questionamentos. Falar de si, do seu trabalho, daquilo que faz e vive possibilita muitos encontros e conexões consigo mesmo, saberes e expectativas, projetos e lembranças." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 1º de dezembro de 2004).

Coerente com a perspectiva proposta, o texto da dissertação está organizado[5] no sentido de apresentar, dispor e expor os contornos temáticos da existência da docência, embaralhando-os, entrelaçando-os no texto como se fossem cinco Cartas: Primeira Carta - Excl-ama-ções e sur-presas: o ingresso na docência; Segunda Carta - Marcas e vestígios: os primeiros dias de aula; Terceira Carta - Os processos e as teias de indenti-fic(x)ações: que professor sou eu?; Quarta Carta - Nega-ções e int-erro-gações: as turbulências e desestabilizações do ser docente; Quinta Carta - As a-firma-ções de ser docente: as sustentações éticas.

As Cartas representam questões temáticas enfatizadas junto aos relatos de vida, na perspectiva anunciada abaixo:

"(...) um aspecto destacado pela Banca foi a possibilidade de realizar uma entrevista 'temática', ou seja, não compor uma história de vida na sua integralidade mas de forma temática destacando aspectos como a escolha profissional, a formação, a permanência na docência, os 'matriciamentos', modelos, saberes que amparam seu fazer pedagógico, entre outros aspectos. Isto é, com questões mais dirigidas". (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004)

O mapa da jornada, aqui entendido como o conjunto das questões temáticas dirigidas pelo pesquisador, funciona como as Cartas do Tarô para Calvino (1991), onde em cada carta virada sobre a mesa - ou à pergunta do pesquisador - a vida se revela no contar.

[1] Tal perspectiva implica em não desconsiderar "que a subjetividade do observador desempenha na análise um papel que não pode ser negligenciado" (MAFFESOLI, 1998, p. 125), em outras palavras, "um olhar inquestionavelmente consciente da parcela de subjetividade que qualquer pesquisa ou análise científica comporta." (MAFFESOLI, 1998, p. 133-4)
[2] Na mesma perspectiva de Ferreira (2002, p.57) utilizamos o conceito "pista" no sentido de considerar que o estudo em sua dimensão empírica é como que um movimento de seguir pistas, de captar as marcas e vestígios que nos ajudam a compreender e a dar sentido às práticas cotidianas da docência.
[3] Cabe ressaltar que, assim como Oliveira (2003), destaco a importância do processo de transcrição das fitas da pesquisa de histórias de vida, já que é aí que se "transforma objetos auditivos em visuais, o que inevitavelmente implica mudanças e interpretação" (OLIVEIRA, 2003, p.154 apud PORTELLI, 1996, p.27), ou como destaca Thompson (1992, p. 292): "A pessoa que faz a fita também é a mais capaz de garantir a precisão da transcrição".
[4] Os nomes são verdadeiros e usados a partir da autorização e consentimento dos professores.
[5] Vale destacar que muitos estudos, que se utilizam da História ou de Relatos de Vida como perspectiva metodológica, ressaltam a importância e o cuidado em expor as histórias. Muitos estudos apresentam a vida das pessoas pesquisadas num continuum. Já aqui, o estudo está organizado de forma temática, ou seja, apresenta questões temáticas sobre os quais todos os relatos de vida são guiados a se manifestar. Esta é uma opção do estudo, considerando os limites e potencialidades daí provenientes.

Do Escuta-dor: O estar-junto com a Docência, Lembranças, Emoções e Outras Sensibilidades

"A dor e o sofrimento já não são uma objeção à vida.
Ao contrário, a dor está presente na vida"
(HARA, 2004, p. 135)

"Como juntar as peças de minha
vida para formar uma imagem coerente? Como encontrar a trama básica
de minha história?
(HILLMAN, 2001, p. 14-5)

"Aquele que escuta o narrador, em contrapartida,
participa da vida dele, a experimenta, numa escuta participativa.
Além disso, aquele que ouve histórias narradas experimenta um ritmo,
uma feitura artesanal".
(MACHADO, 2004, p.10)

A narrativa da docência quer permanecer, perdurar, quer ficar, ganhar forma, traços e contornos. O poder estético e o encantamento do contar-se faz com que o escuta-dor mobilize dispositivos para recontar a história, a vida escutada. Ao fazê-lo, o escuta-dor se metamorfoseia, incorpora e assume o lugar de conta-dor-do-outro, recria e ressignifica a história sob nova perspectiva e olhar, já que este estampa na narrativa sua própria experiência de vida e imaginário. O escuta-dor mobiliza dispositivos que ressignifica e recria a história contada. A história contada e narrada permanece, novos conta-dores e escuta-dores são convidados a ressignificá-la e recriá-la. Trata-se de um recontar inacabado, inesgotável e infindável.

No que tange ao evento da entrevista, da conversa-diálogo, do ritual do encontro e de escuta dos relatos da docência, cada entrevista, cada encontro com a docência, viabilizado pela disposição em falar de si, de escutar e relatar a vida, é um momento singular. "Os rituais não são todos iguais; cada um tem o seu sabor" destaca Somé (2003, p.58). É um momento não só de estruturação metodológica do trabalho, mas fundamentalmente de estarmos-juntos pensando, refletindo, lembrando, sistematizando, ressignificando os tempos, a vida, a docência, a escola. Escutar a docência, nas suas mais diversas manifestações é captar suas pulsações, seus ritmos e suas cores. É um fluir de emoções e lembranças que constituem e afirmam as várias e diversas formas e jeitos de ser docente e estar na escola de educação profissional. Trata-se de um processo que Hara (2004, p. 62), referindo-se a Benjamin, destaca como "expedição pelas profundezas da lembrança".

O relato, em seu início marcado pela formalidade das perguntas do entrevistador e das respostas dos entrevistados logo se transforma numa volúpia de palavras, de lembranças, de pensamentos de quem relata a sua vida. Lembranças trazem novas lembranças. Detalhes do passado longínquo são contados como se tivessem sido "vividos semana passada", recheados de emoções, muitas vezes umedecidos pelas lágrimas e contados com voz trêmula.

As lembranças são como imagens separadas, que ao girarem no fluxo do diálogo e na mesa circular da pesquisa, tornam-se uma só, aqui e agora, passado ressignificado no presente, projetando um jeito de ser docente. O relato e a lembrança de si faz com que quem relata sua vida, se expanda para além de sim mesmo.

Trata-se de uma con-versa com a docência, com a sua vida e suas conexões possíveis. É uma perspectiva de escrever, escutar e fazer pesquisa. São os nexos e conexos. São os nós que conosco se epifanizam e se manifestam.

"qualquer coisa próxima, qualquer coisa íntima, é impossível sem um espaço ritual. Qualquer coisa que leve as pessoas a expressarem, umas para as outras, algo diferente de sua vida diária, toca no mundo espiritual, no mundo ancestral e é, portanto, um evento ritual" (SOMÉ, 2003, p.63)

Nessa perspectiva, fomos criando e gerindo um espaço sagrado: o ritual da entrevista. Fomos formando um círculo, uma mandala[1] onde nos reuníamos ao entorno da mesa circular da pesquisa.

Enquanto escuta-dor do outro, percebe-se um fluir de emoções quando da lembrança dos momentos difíceis, da dureza da vida. Lembrar deste passado também pode ser difícil, mas é valoroso saber que, apesar de tudo, a vida continua e que aqueles momentos geraram não só lembranças, mas gestaram a própria constituição da docência que hoje pára e se conta, em suas experiências, em suas durezas, em suas dores e alegrias.

"Estabeleci nexos e identificações, fui captado e capturado pela perspectiva do relato e pelos 'nós' estabelecidos e afetados com a minha própria caminhada, além, obviamente, dos acasos e circunstâncias. (...) Que conexões de possibilidade são oferecidas por um relato e uma vida? Que condições de possibilidades nos afetam com um relato como este? São 'conexões repletas de sentido'. Que provocações desencadeiam e nos afetam? Fui tocado e vibro quando isto acontece... sentidos são vislumbrados. 'A vida é inteira e não partida, a partilhamos, mas com os outros'." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 08 de novembro de 2004)

O fato dos professores do Ensino Técnico, via de regra, iniciarem sua carreira profissional na indústria ou em empresas de engenharia, os caracteriza e os constitui de forma peculiar - se compararmos, suponho, com os professores dos níveis de Ensino Fundamental e Médio -, levando tais experiências e vivências para a docência e para a sala de aula. As experiências de vida provocadas pela carreira profissional no mundo da indústria implicam e afetam a forma de se contar e de se relatar, como abaixo mostram os fragmentos de relatos sobre as muitas dificuldades enfrentadas e seus reflexos na família.

“Bom aí a minha vida virou do avesso também de novo. Foi um baque muito grande, uma demissão inesperada (...) Há! Aquilo faltou o chão sabe! Faltou tudo para mim!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 428-436).

“Então quando eu saí dali aí ficou difícil, o emprego, quatro filhos e eu fiquei de um lado para o outro. Eu sei que eu fiquei dois anos desempregado” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 447-448)

“(...) era uma coisa meio complicada aí na vida deles [os filhos] e na minha”. (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 308-310).

“Eu não conseguia mais emprego e a minha dificuldade maior em conseguir emprego era por causa da informática. Todas as vagas exigiam experiência em computador” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 456-458).

“(...) foram coisas muito difíceis de épocas que eu não tinha dinheiro pra tirar o xeróx do meu currículo para mandar para algum lugar, né. Então foi complicado”. (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 492-493).

Lembranças das dificuldades, das dores e sofrimentos, a passagem desse tempo que, embora dolorido, sofrido, quando lembrado hoje, mostra a superação de si, metas e sonhos de vida conquistados, a vida-que-deu-certo (NIETZSCHE, 2003, p.25). Esse é o ato do escuta-dor do outro, e tal dimensão da lembrança é manifesta em praticamente todos os relatos dos professores.

“Sofri muito. Sofri um monte mesmo. (...) eu falava tudo errado, eu falava caboclo, caminhava na rua olhando pras placa, olhando pro céu, ... olhando os edifício então era uma gozação. (...) Sempre a maioria vence né, e eu fui domesticado” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 16-20).

“(...) então assim ó, as dificuldades foram grandes, mas existia a vontade de superar aquilo. Todos diziam, naquela época se dizia, que estudando tinha futuro, e eu acreditava nisso. Se não tinha ainda presente, eu imaginava que tinha futuro.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 453-455).

“(...) mas isso são ossos do ofício que eu digo, são coisas que...é...nem tudo são flores. Tudo é assim na vida.” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 841-842).
Como ilustração desta idéia de que nem tudo são flores na vida, vale trazer as palavras de Cruz e Sousa (s/d) do soneto "Sorriso Interior"[2]:

" O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!"
(p.195)

Trata-se da dor e do sofrimento transformado em uma bela flor de entusiasmo pela vida, ou como diz Nietzsche (2003, p.26): "aproveita acasos desagradáveis em seu próprio favor; o que não acaba com ele, fortalece-o". Nesse sentido, é possível relacionar com a perspectiva de vários estudos que mostram que dar voz às pessoas, pelo fato de serem escutadas, gera um aparente bem estar.

Assim como o cronista João do Rio[3] não me interesso pela descrição exata dos fatos como verdadeiramente se desenrolaram, já que a história narrada e relatada é sempre afetada pela imaginação de ambos, de quem a conta e de quem a escuta. Mais do que a verdade dos fatos, procurei, nas andanças pela escola e pela escuta da docência, a música que emerge do estar-junto e da vida na escola de educação profissional, admirando assim "o mistério das coisas visíveis". Um exercício de captar o fluxo subterrâneo e dançante da escola ou - como se refere o documentário Janelas da Alma - de "fotografar o invisível"[4]. Não pretendi desvendar todo o segredo, apenas mostrá-lo da maneira mais surpreendente possível, distante da lógica ordenadora e asfixiante da razão que dilacera a própria vida.

Mas então, o que é visível e invisível? O que tem concretude no relato e na existência da docência? E o que é inexistente? O que é possível de se fotografar do invisível? O que os olhos não vêem, mas se constitui no subterrâneo e seu fluxo? Existe, de fato, algum segredo, algum mistério que os olhos da razão não vêem? A intuição diz que sim! A intuição também diz que é tarefa impossível enjaular e capturar a integralidade de qualquer mistério, mas que é possível sentir e captar seus fluxos e contornos, e que estes não podem ser submetidos à lógica instrumental da razão. Então, como captar os fluxos secretos da memória não revelada e não manifestada? Como captar os silenciamentos e as reticências?

“A minha vida sempre foi meio tumultuada, tem coisas que aconteceram neste meio tempo que acabei não falando” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 298-299)

Esta frase é reveladora de que nem tudo pode ser submetido, de que nem tudo pode ser capturado e lançado para a visibilidade na vida da docência. Existem segredos e, possivelmente, continuarão a existir muitos outros, que ficarão bem escondidos nos escombros da memória.

"A memória é seletiva. Eventos são lembrados, detalhes são evocados outros são esquecidos, pois tudo não pode ser lembrado. O esquecimento tem um papel fundamental na memória. A memória permanece saudável por que tem a capacidade de esquecer, de regular e equilibrar lembrança e esquecimento. É humanamente impossível lembrar de tudo. Lembrar é, de certa forma, reviver o passado agora, em outro lugar, visto de outro lugar. Os professores selecionam pontos de sua vida, como um centelha de vida, ou um iceberg, que no relato é manifesto em detalhe da trajetória." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 19 de janeiro de 2005)

O que terão os professores silenciado? Por que foram lembrados alguns eventos e outros não? Quais os mistérios e os segredos que permaneceram invisíveis à pesquisa e ao pesquisa-dor? O que permaneceu inexistente nos relatos? O que passa de "invisível" para "visível" na feitura dos relatos? O que passa a ganhar "existência" na tecitura da narrativa e na trajetória de vida destes docentes?

As do(lo)res e durezas, os sofrimentos, concretudes ou o pesadume (CALVINO, 1990) da vida são, de certa forma, concebidos pelos entrevistados como saborosas experiências e vivências. Trata-se da “capacidade épica da memória” (BENJAMIN, 1975, p.65). As lembranças de um tempo passado são revividas como fantásticas, como magníficas, como façanhas heróicas. É possível pensar que, no tempo em que foram efetivamente vividas, tais dores e dificuldades tinham um gosto um tanto mais amargo do que as manifestadas no relato, no ato de lembrar. No entanto, ao relatá-las epicamente, o vivido se transfigura, ganha cor, ganha outro sabor, dispositivo necessário para o processo de identificação e afirmação docente.

Assim, os relatos ilustram bem tal dimensão épica da memória, lembrando das dificuldades e durezas que o viver acarreta, mas que, apesar disso tudo, são experiências que merecem ser lembradas como exemplos de superação e de referência enquanto professor.

“Essa foi uma fase muito difícil, (...) é triste isso, mas faz parte da minha história, eu tinha que sair para a rua para não ver os outros comer, e voltar a trabalhar de tarde. (...) aquele pão d´água seco era o que eu tinha. As vezes me escondia atrás da máquina para ninguém ver, isso quando tinha né.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 124-131).

“(...) quantas vezes que tive que deixar de comer mas não deixar de estudar. (...) No momento que tu passa fome mas não deixou de estudar e que tu chegou aqui ganhando um salário mínimo, se tu não construiu muito mas alguma coisa tu construiu né... então isso é uma lição que eu trago para a sala de aula” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1250-1254).

“Minha vida era assim, trabalhava semana inteira e domingo eu descansava em casa. Mandava dinheiro para minha mãe, a vida era difícil, uma vida complicada ali.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 107-109).

A vida era difícil, a vida era complicada! E hoje deixou de sê-la? Provavelmente não, outras durezas e outras tristezas se apresentam ao destino. No entanto, não há dúvida que o passado foi ressignificado e aquelas dificuldades superadas, vencidas ou, pelo menos, foram coloridas e até saboreadas no tempo presente. Nesta perspectiva, Mário Quintana (1997) diz: “O passado é uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre, ainda quando foi uma lástima. A memória tem uma bela caixa de lápis de cor”.

É possível visualizar, nas memórias da vida profissional e do mundo do trabalho, manifestações de valorização do seu potencial profissional como uma forma de se auto-anunciar singular, exclusivo, diferente, um herói da sua própria vida e superação de si. O reconhecimento por parte da empresa ou do seu imediato superior é uma forma de auto-afirmação:

“(...) uma época lá que trocou um cara que era chefe de setor, (...) ele chegou e olhou assim: tu não é um cara para trabalhar em máquina" (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 111-112).
“Eu me lembro que as palavras dele foram estas: esse rapaz não pode estar na fábrica, tem que ser melhor aproveitado" (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 204-205)

O trabalho da memória sobre o mundo do trabalho, própria de um espaço de competição, onde apenas alguns se destacam e se sobressaem, evocam as lembranças dos episódios de glória, de reconhecimento. E as lembranças de exclusão, de dor, de desvalorização do sujeito no mundo do trabalho, onde estão? Guardadas em algum recanto da memória? Se forem lembradas as situações de exclusão, de dor, de desvalorização, como elas serão lembradas? Serão esquecidas, serão ressignificadas no ato da narrativa?

As lembranças de destaque e reconhecimento emergem para salvar o sujeito que relata, possibilita com que ele continue vivo e dando sentido ao seu viver, como a bela obra de arte resultante do delicado exercício de entalhar os sentidos e as tramas da memória, em que a teia que a sustenta é a vida. Assim, do ponto de vista da narrativa ou de quem conta sua biografia, o relato

"(...) não visa a descrição do passado 'como de fato foi', mas a sua retomada salvadora na história do presente. Um sujeito, podemos acrescentar, que não fala de si para garantir a permanência da sua identidade, mas que, ao contar sua história, se desfaz de representações definitivas e ousa afirmar-se na incerteza" (GAGNEBIN, s/d, p. 91)

O relato possibilita estabelecer os nexos e sentidos que dão suporte ao viver e à imaginação que ordena o caos da existência. Encontrar os nexos e conexos da existência, dos sonhos, metas e compromissos assumidos no viver, possibilita um belo exercício de amarrar os fios do passado no tecido do presente, com os nós que entrelaçam a docência na trama da sua trajetória.

"A gente tem compromissos com o passado, alguma coisa trouxe a gente até aqui, e tem compromisso com a gente mesmo né. A gente traçou metas, traçou planos, sonhou coisas. Acho que elas tão vivas ainda. Até de algum modo, a escola virou minha família, trabalho com eles, sofro com eles, vibro com eles...acho que tenho competência, tenho problemas, algumas coisas não consigo resolver. O que me move é a certeza que algumas coisas que eu esperava de mim eu consegui, coisas que as pessoas esperavam de mim também e construir minha história, minha trajetória." (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 541-547).

Assim, é possível de se verificar que o relato da docência produz múltiplas imagens, cheiros, vozes e lembranças que, se de um lado estão recheadas de paixão e prazer, de outro estão mergulhadas em dores, sofrimentos e desgostos que, além de criarem as condições de possibilidade para estabelecer sentidos de vida, são muitas vezes catapultadas no abismo do esquecimento.

[1] "A mandala é, literalmente, um círculo, embora o seu desenho seja complexo" (Dicionário dos Símbolos, 1982). Nesse sentido, mesmo compreendendo que o vocábulo mandala possa transcender a noção de forma circular, faço aqui seu uso na perspectiva daquilo que designa toda figura organizada ao redor de um centro, ou seja, sua forma redonda que direciona o olhar para o centro. Os círculos sugerem totalidade, unidade, o útero e completude, sendo que é possível pensar a mandala como uma representação geométrica da dinâmica entre o homem e o cosmo. Fazendo referência a dimensão circular da estrutura mandálica é possível dizer que a vida do homem é um círculo.
[2] "Sorriso Interior" foi o último soneto composto pelo poeta.
[3] João do Rio, cronista carioca, movimentava-se em todos os recônditos e cantos da cidade do Rio de Janeiro observando atentamente as pequenas e as grandes transformações ali operadas. Era um caçador infatigável de notícias e não se interessava apenas pela descrição exata dos fatos como verdadeiramente se desenrolaram. "Mais do que a verdade dos fatos, João do Rio procurou em suas andanças pelas ruas o lado épico, a poesia que brotava nas calçadas" (Hara, 2004, 176).
[4] Documentário “Janelas da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho – 2003.

DA ESCOLA DOS DESTINOS CRUZADOS (1)

NAS MARGENS E NAS BORDAS (primeiro entre-lugar)

"pôr a vida nas idéias e as idéias na vida" (MORIN)

Dos Fluxos de Vida Manifestados na Docência da Escola de Educação Profissional: Embaralhando e Tecendo Docências e Existências

"A visão 'traumática' dos primeiros anos controla de tal maneira
a teoria psicológica da personalidade e seu desenvolvimento que o foco de nossas lembranças e a linguagem que usamos para contar nossa história já estão contaminados com as toxinas de tais teorias. Talvez nossa vida seja menos determinada pela infância do que pelo modo como aprendemos a imaginar nossa infância. Somos (...) menos prejudicados pelos traumas infantis do que pelo modo traumático como nos lembramos da infância"
(HILLMAN, 2001, p.14)

"(...) diferentes trajetórias e distintos momentos (...)
Histórias no plural; formas de falar a vida (fora ou dentro da escola) no plural;
Maneiras de mudar essa vida no plural também. E é nesse plural que reside a singularidade que faz de nós seres humanos, que nos permite descontinuar para continuar"
(KRAMER, 1993, p.199)

“Viver é plural” (GUIMARÃES ROSA)

"E assim eu me conto a minha vida" (NIETZSCHE, 2003, p.21)

Neste primeiro entre-lugar da dissertação, optei em apresentar cada um dos docentes entrevistados a partir de seu próprio testemunho, priorizando assim os sentidos tecidos pelo relato de sua trajetória, tecendo docências e existências. O testemunho é de cada docente, no entanto, articulado pelo pesquisador. É a vida que está em pauta e as conexões possíveis em evidência.

Trata-se de um espaço ritual onde cada um se manifesta, se expressa, escuta o outro, invoca a vida, a intimidade e o espírito. "Quando invoca o espírito, automaticamente algo se destranca por dentro" (SOMÉ, 2003, p.85), ou seja, a vida é invocada pela simples abertura do ritual da entrevista e o testemunho de si, desencadeada pela pergunta inicial: "quem é fulano de tal?".

Quem é e o que diz o Professor José Flori Cardoso?
Quem é e o que diz o Professor Sandro Luiz Mattiello?
Quem é e o que diz o Professor Ademar Lino Kleinübing?
Quem é e o que diz o Professor Ricardo Leal Costi?
Quem é e o que diz o Professor Sidney Kossmann?
Quem é e o que diz o Professor Ronaldo Bianchin?
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Título do Projeto: Os Processos de Identificação e as Éticas na Docência da Escola de Educação Profissional. Dos fluxos de vida e das sur-presas em a-firmar-se docente.

Você está sendo convidado a participar em uma pesquisa. O documento abaixo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que está sendo realizada. Sua colaboração neste estudo é muito importante, mas a decisão em participar deve ser sua. Para tanto, leia atentamente as informações abaixo e não se apresse em decidir. Se você não concordar em participar ou quiser desistir em qualquer momento, isso não causará nenhum prejuízo a você. Se você concordar em participar basta preencher os seus dados e assinar a declaração concordando com a pesquisa. Se você tiver alguma dúvida pode esclarece-la com o responsável da pesquisa. Obrigado pela atenção, compreensão e apoio.

Eu, Rafael Arenhaldt, em respeito aos direitos legais e à dignidade humana do docente voluntário desta pesquisa, Sr. PROFESSOR, peço respeitosamente a autorização do mesmo, para que possa fazer parte do grupo para análise posterior e confecção de futuros resultados, de forma que se houver concordância, responsabilizo-me através deste termo a prestar toda a forma de esclarecimento para melhor entendimento do papel do entrevistado neste trabalho; citando-os desta forma abaixo:
1. O objetivo deste trabalho consiste em refletir acerca das éticas e dos processos de identificação na docência da escola de Educação Profissional através dos relatos de vida e na convivência com os mesmos.
2. Para tanto, o responsável por esta pesquisa realizará uma entrevista com o docente voluntário e gravará em fita K7 o relato. Esta fita será posteriormente transcrita e analisada pelo entrevistador para a realização do trabalho de pesquisa.
3. Coerente com o referencial teórico que embasa este projeto, o entrevistador apresentará os resultados prévios da análise das entrevistas para reflexão com o docente voluntário sobre sua prática cotidiana. Além disso, o entrevistado está convidado a participar como ouvinte da banca de defesa desta dissertação de mestrado, que se realizará, possivelmente, no mês de agosto de 2005, nas dependências da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4. Através deste documento fica assegurado o direito ao Sr PROFESSOR de que terá todos os esclarecimentos relativos à pesquisa garantidos, incluindo a metodologia utilizada. A partir do momento que o docente participante da pesquisa não desejar mais fazer parte da pesquisa, reservo-lhe o direito de retirar o seu consentimento, livre de sofrer qualquer penalização ou danos quaisquer que sejam.
5. Não haverá qualquer tipo de despesa ao participante, no que tange a materiais ou testes.
6. Se no transcorrer da pesquisa, tiver alguma dúvida ou por qualquer motivo necessitar poderá procurar o Rafael Arenhaldt, responsável pela pesquisa pelo e-mail rafael@mesquitacom.br .

Eu, PROFESSOR, docente voluntário, dou consentimento livre e esclarecido, para que se façam as análises necessárias a esta pesquisa e posterior uso e publicação dos dados nos relatórios finais e conclusivos, a fim de que estes sirvam para beneficiar a ciência e a humanidade.

Porto Alegre (RS), 2005.

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PROFESSOR

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RAFAEL ARENHALDT

Quem é e o que diz o Professor José Flori Cardoso Prestes?

"eu tenho orgulho que fui aluno da escola" (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linha 1255)

Tem 51 anos, 4 filhos, uma neta e um neto. Dois de seus filhos estudaram na Escola Mesquita. Sua formação é de Técnico em Mecânica e também foi aluno da Escola. Tem 9 anos de experiência como docente e lecionou somente na Escola Mesquita. É professor de Desenho Técnico e CAD

A entrevista com o Professor José Flori foi a primeira das seis entrevistas realizadas para este estudo. Cercada de expectativas - talvez mais minhas do que do próprio professor em virtude de ser a primeira - a entrevista foi realizada na manhã do dia 07 de julho de 2004, nas dependências do Sindicato dos Desenhistas do Estado do Rio Grande do Sul (SIDERGS), no Centro de Porto Alegre, instituição na qual o entrevistado exerce o cargo de Presidente. Cheguei às 9 horas no local combinado e fui recebido com um chimarrão. O professor me mostrou as dependências do Sindicato, depois sentamos no seu gabinete e iniciamos logo a entrevista que se configurou num diálogo, numa conversa muito interessante. Iniciei expondo o significado e a importância de ouvir seu testemunho, seu relato para o desenvolvimento do estudo e pedi de imediato para que se apresentasse a partir da pergunta: quem é José Flori?

Com o gravador ligado e ouvidos atentos escutei suas primeiras palavras na qual destaca de forma incisiva que o fato de dar aula hoje está no "sangue". É na figura da mãe que encontrou o exemplo e com quem aprendeu desde cedo a ser solidário. Relaciona a atividade de ensino com o ajudar as pessoas. Segundo o professor, este espírito solidário vem da infância, pois carrega consigo e aprendeu "isso de explicar as coisas, de passar conhecimento, de dividir o que tem".

O Professor José Flori iniciou sua vida profissional na indústria e lembra com emoção das dificuldades pelas quais passou tanto na infância, quanto na adolescência no interior, bem como dos primeiros tempos em que veio para a região metropolitana atrás de emprego e trabalho. Das voltas e revoltas da vida diz sem hesitação sobre os possíveis caminhos que a vida apresenta, suas encruzilhadas e escolhas: "hoje eu vejo até que (...) talvez a minha vida poderia ser muito melhor (...) mas tem coisas na vida que quando não é, não é, né".

O início a docência foi um "bico", um quebra galho para substituir um professor afastado. Embora sempre desejasse "dar aulas" a docência aparece inicialmente como possibilidade de complementação financeira. E é no caminho, no percurso da própria atividade docente que descobre-se, afirma-se professor, com prazer e satisfação. O que era inicialmente um bico passa a ser a própria manifestação da sua "vocação", aquilo que está no "sangue" e é hereditário, aliado ao desejo, à vontade própria, ao esforço e dedicação em aprender a ser professor que se transfigura em prazer, em sabor de ser professor.

Como professor de Desenho Técnico manifesta ter tido facilidade com desenho e seu aprendizado. Enquanto aluno sempre se sobressaia no desenho. Teve uma experiência marcante no Exército onde foi Cabo. Devido ao gosto pelo estudo foi ali que experimentou pela primeira vez o sabor de ser chamado de "professor" pelos colegas, já que vivia explicando as coisas para eles. Começava aí um processo de identificação com o fato de ser professor. O Exército o fascinava, mas não conseguiu seguir carreira por excesso de contingência. Após o serviço militar decide dar outro rumo a sua vida e vem para a região metropolitana de Porto Alegre. Até os 18 anos viveu em Cachoeira do Sul onde foi criado na beira do rio, "atravessando rio a nado, no mato". Diz ter tido uma infância e uma adolescência muito saudável e orgulha-se pelo fato de que "se eu cair numa Amazônia da vida eu sei me defender".

Veio para Esteio com 19 anos - em 1974 - atrás de trabalho. Através de um amigo conseguiu um emprego de servente na BETANIM. Morou 6 anos em Esteio. Lembra desta época com emoção. Lembra das dificuldades, do esforço e da dedicação. Fazia hora-extra, ganhava salário mínimo, tinha horário pesado e ajudava a mãe enviando dinheiro: "a vida era difícil, uma vida complicada ali". Com o salário baixo e sem refeitório na empresa "muitas vezes eu não almoçava. Essa foi uma fase muito difícil (...) é triste isso mas faz parte da minha história, eu tinha que sair para a rua para não ver os outros comer, e voltar a trabalhar de tarde".

Trabalhou em várias outras empresas na área da indústria. Diz que sua vida mudou quando entrou para a COEMSA já que ali o salário era melhor e a empresa tinha refeitório. Lembra inclusive que neste período engordou consideravelmente devido a alimentação regular. No relato valoriza a ajuda que teve neste período, já que passou necessidade anteriormente. Começou a fazer alguns cursos e como tinha facilidade para o desenho foi incentivado a fazer cursos nesta área. Fez o curso de "leitura e interpretação de desenho mecânico" e "traçado de calderaria". Começou a trabalhar na profissão de desenhista em 1976. São mais de 28 anos de profissão, destaca. Também trabalhou um tempo nas Máquinas Condor como "Desenhista Detalhista". Depois voltou para a COEMSA como "Desenhista Projetista". Trabalhou 15 anos na MORGANTE, emprego onde mais se realizou profissionalmente. Considera as experiências profissionais como uma escola que o ajuda até hoje nas suas aulas.

Desde 1978 participa da Administração da Associação dos Desenhistas, que depois se transformou no Sindicato. Criou os 4 filhos. Estudou três semestres de Engenharia na UNISINOS e depois parou devido as dificuldades financeiras, mas em contrapartida realizou muitos cursos de complementação profissional. Sua experiência como sindicalista também é considerada como uma escola. Fez muitos cursos sobre sindicalismo, política, movimentos sindicais, monitor sindical.

Em 1992 decide fazer Curso Técnico em Mecânica na Escola Mesquita. Terminou o curso em 1994. Nesse meio tempo, em 1993, foi demitido da MORGANTE. Foi um momento muito difícil. Ficou desempregado durante dois anos, tendo que sustentar os filhos. Trabalhou também numa empresa terceirizada na Petrobrás e tentou ser vendedor de óleo e de revista. Teve dificuldade de conseguir novo emprego já que não conhecia informática. Conseguiu uma vaga na WECO. Continuou ganhando pouco e foi procurar mais alguma coisa para fazer. Lembrou da Escola Mesquita, pois sempre pensou e teve vontade de um dia dar aula. Foi convidado para elaborar um curso de "leitura e interpretação de desenho mecânico" e começou dando aula para este curso. Logo depois foi convidado para substituir um professor que estava afastado por questões de saúde. Era a primeira experiência como professor de um curso técnico: "era um ex-aluno da escola que estava ali quebrando um galho". Trata-se do aluno da escola que se transforma em um dos seus professores. Ele lembra dos detalhes da primeira aula e dos primeiros tempos como professor. Começou a dar aula com 42 anos.

Ressalta que aprendeu a dar aula um pouco através dos cursos do sindicato e o outro pouco diz que vem de dentro, que está no sangue, a vocação. Foi ficando na docência, permaneceu substituindo o professor, até que os alunos solicitaram à direção que ele ficasse em definitivo como professor. Acabou sendo admitido como professor na escola em 1996. Destaca que no início foi um pouco difícil se acostumar com a idéia de ser professor, sendo que estava registrado na carteira de trabalho. "Professor, eu não era professor! Não considero... aliás, como eu não tenho uma formação, até hoje eu acho que estou quebrando o galho". Ficou inseguro por um tempo, mas foi lutando para se firmar e permanecer como professor da escola. Revela que aos poucos foi se afirmando como professor, foi adquirindo experiência em cima do próprio trabalho e foi estabelecendo um diálogo com os alunos: "uma coisa que eu considero que o professor em sala de aula ele tem que estar mais perto possível do seu aluno". Defende que o professor tem que se considerar um eterno aprendiz. E assim define a profissão de professor: "tenho que continuar adquirindo mais conhecimentos para passar mais conhecimentos para o aluno. A nossa profissão é uma coisa fantástica desta forma aí. E passar a matéria para mim é uma conseqüência, talvez é por isso que tem dado certo o meu trabalho com os alunos, a interação com eles, talvez eu faça alguma diferença com outros profissionais, que eu sou exigente"

O Professor José Flori destaca que tem orgulho do trabalho que realiza na escola: "O meu trabalho na escola ele é a minha vida". Como estratégia para dar aulas sempre procurou observar pessoas que considera um exemplo, um modelo. Quando começou a dar aula já trabalhava a 20 anos como desenhista profissional, então, segundo ele, ensinar a desenhar foi algo que não foi difícil. Considera que a amizade com alunos e colegas é fundamental, assim como o diálogo, o respeito, a compreensão e a confiança entre as pessoas.

Perguntado o que o mobiliza na escola, o professor responde que cada dia na profissão de educador é um desafio. "Um desafio gostoso". É uma satisfação ensinar e: "ajudar as pessoas a melhorar profissionalmente. Eu acho que isso é uma mola né, uma mola propulsora de tudo. De ter uma satisfação, de considerar que a tua profissão ajuda as pessoas a melhorar profissionalmente, enquanto ser humano, enquanto pessoa, que aquilo até vai desencadear uma outra coisa na família dele e tal, que tu faz parte da vida destas pessoas"

E finaliza dizendo que hoje, na verdade, a profissão que considera a sua é professor, mesmo depois de trabalhar mais de 25 anos como desenhista. Dar aula é uma coisa que gosta, que o preenche, que dá prazer. Ressalta que, como professores, nós fizemos parte, deixamos marcas na vida das pessoas, assim como os professores fizeram parte da nossa. E conclui dizendo que já construiu muita coisa na vida e que tem prazer em ajudar a continuar construindo uma escola melhor.

Quem é e o que diz o Professor Sandro Luiz Mattiello?

"é algo até meio estranho, hoje quando eu penso nisso" (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica)

Tem 35 anos, casado e um filho. É formado em Engenharia Elétrica - ênfase Eletrônica pela PUCRS, com especialização Docência Universitária pela ULBRA. Ingressou na docência em 11/09/1995 na Escola Mesquita. É professor de Eletrônica Digital e Analógica nos Cursos Técnicos de Eletrônica e Automação Industrial da Escola Mesquita. Atuou muitos anos como engenheiro na área de telecomunicações e atualmente dedica-se exclusivamente ao magistério, lecionando também na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha (Novo Hamburgo).

A entrevista com o Professor Sandro foi realizada nas dependências da Escola Técnica Mesquita, no dia 24 de novembro de 2004. Desde o convite para participar desta pesquisa, passando pelo momento do relato, sempre esteve interessado e com disposição efetivamente presente neste estudo como sujeito autor. Professor comprometido, Sandro é reconhecido pelos colegas e alunos pela postura dialógica e tranqüila, de atitudes serenas e conciliadoras.

Recentemente, ano de 2002, procurando qualificar sua formação no magistério, realizou curso de Especialização em Docência Universitária, sendo o seu trabalho de conclusão intitulado "O Professor do Ensino Técnico". Trata-se de um estudo que, em certo grau, se aproxima da investigação que ora realizo. Fato que, além de nos aproximar em termos de interesse investigativo e formação, é fator facilitador e desencadeador de uma relação de empatia.

A entrevista, iniciada pela pergunta "Quem é Sandro Luiz Mattielo?", provocou no professor a necessidade de encontrar as palavras certas, permeadas de risadas e uma longa pausa, desencadeando a reflexão de si e da sua vida, como bem mostra suas primeiras palavras: "quem é Sandro Luiz Mattiello, é uma boa pergunta isso [pausa] (...) (risos), deixa eu pensar como é que eu vou.... falar [pausa]". Falar de si não é algo fácil, pelo menos não tão habitual.

O Professor Sandro se apresenta a partir de alguns dados atuais como a idade, seu estado civil, lembrando que sua esposa é professora de Educação Física, que lecionou na Escola Mesquita, local onde se conheceram. Faz questão - e manifesta com um significado especial - de se apresentar como pai: "nós temos um filho com 3 anos de idade que é uma figuraça, que é o Pietro". Professor Sandro também se define um cara que ... apesar de ter formação técnica [área das ciências exatas] (...) minhas característica são quase todas para a área de humanas.

Quando jovem, embora gostasse de animais, chegando a pensar em fazer Veterinária, "também ficava meio fascinado assim, com a coisa é... aparelho de televisão, aparelho de som, e ficava pensando como é que é essa coisa, como é que isso funciona". É desde aí que, de alguma forma, se gesta a escolha de fazer algo relacionado à eletrônica e ser engenheiro: "me veio a idéia de fazer Engenharia Eletrônica". Faz referência, assim como os Professores Ademar e José Flori, ao ensino por correspondência através de uma instituição muito conhecida e disseminada em décadas passadas: o Instituto Universal Brasileiro: "Ah eu via muito aqueles negócios que vinha muito em gibi do Instituto Universal Brasileiro".

Veio do interior, da cidade de São Jorge - RS para Porto Alegre no ano de 1987 realizar o vestibular. Estava em dúvida entre Veterinária e Engenharia Eletrônica. Prestou o vestibular na UFRGS, em Engenharia Elétrica, e na PUCRS, em Veterinária, reprovando no primeiro e aprovando no segundo. Decidiu não fazer o Curso de Veterinária em Uruguaiana, e permaneceu em Porto Alegre morando com sua irmã e trabalhando como Office Boy do Banco Bradesco. Um ano depois, tentou novamente o vestibular, Veterinária na UFRGS e Engenharia Elétrica na PUCRS, onde foi chamado neste último. Matriculou-se e iniciou o Curso de Engenharia Elétrica, desistindo da Veterinária e também dos vestibulares.

Foi durante o curso de Engenharia Elétrica, ainda enquanto estudante, que experimentou e vivenciou o lugar de ensinante. Ligados pelo desafio de aprender uma matéria e um conteúdo difícil, os colegas e alunos encontraram alternativas e estudaram junto. É desde esta experiência que Sandro passou a ajudar seus colegas que não entendiam ou aprendiam bem a matéria. Foram os grupos de estudo de preparação para prova, os momentos de aprendizagem coletiva, os horários alternativos, que se configuraram como espaços e tempos em que Sandro se percebeu e passa a ser percebido como alguém que explica melhor do que o professor. Sempre disponível e solidário lembra de uma manhã que ficou com colegas: "eu fiquei dando (...) uma aula assim, ah não! Isso é assim, isso é assim tal (...) é, é no quadro explicando para um tal, faz assim, eu explicava e eles ali, perguntava se entendia, não, entendi e tal. E aí de vez em quando saía uns comentários assim: Bah, mas tu explica melhor que o professor, né". Trata-se de um processo de identificação com a docência ainda na época de estudante de Engenharia.

Além disso, outras manifestações indicam este processo de identificação do ser professor a partir de provocações como: de vez em quando perguntavam: "Tu nunca pensou em ser professor, em dar aula?". As manifestações dos seus colegas o constituia como alguém que explicava melhor do que o professor: "foram vários que disseram isso, (...) ah então realmente, realmente devo ter isso, devo ter essa flexibilidade para explicar.... e eu comecei a pensar nisso" [ser professor]. Um pensar em ser professor que se gesta ainda enquanto aluno. Um gestar docente que é lembrado agora quando de um contato com um colega da época do curso que disse: "Quando a gente estudava tu já pensava em ser professor! E eu disse assim: É, é verdade, já pensava. (...) A época da PUC, eu já pensava em ser professor realmente, eu comecei, ai eu comecei a ir pensando nisso né, é eu acho que, e eu gostava, eu comecei a gostar disso...”

Começou a gostar, a ter satisfação em ensinar e em pensar em ser professor, "me dava um sentimento de prazer, assim ó muito gostoso. Ai comecei a pensar seriamente no assunto, em ser professor". Sim, ser professor era uma possibilidade, algo para se pensar seriamente. Mas era preciso, segundo Sandro, primeiro se formar, começar a trabalhar e, então, depois "quando tiver com uma boa experiência, ai vou, vou ser professor né".

Também é desde o lugar de estudante na relação com seus professores que Sandro evidencia modelos e referências do que é ser docente. Lembra de determinados professores que o marcaram, seja na sutileza de uma dica de estudo, seja na postura ou no método de trabalho que hoje, na posição de professor, se espelha: "cada vez que eu ia para uma aula... se a aula era boa, se eu gostava da forma como usava, eu olhava para o professor e dizia assim: 'É uma boa fórmula, um bom método'."

Era uma referência que afirmava ou mesmo negava um jeito de ser professor com o qual se identificava ou não. Um movimento de comparação e de analogias: "ah esse método não tá bom, não gosto disso, essa aqui também não, esse é bom, esse á razoável, esse é excelente". Alguns professores eram referências positivas, eram espelhos: "um modelo que devia ser seguido sem dúvida, olha na, assim na, se quisesse pegar aquilo lá, acrescentar coisas e melhorar ótimo, mas se já fizesse daquela forma já tava muito bom". "Me espelhei, quando vim a ser professor, me espelhei nisso". "Tinha essa questão da empatia com a professora, com o método dela, com a forma dela trabalhar"

Já alguns professores eram referências negativas: "quando for trabalhar como professor, não vou poder (...) não vou poder seguir isso aqui né, porque justamente eu que questiono tanto esse tipo de atitude não vou poder ter a mesma, então eu ia fazendo mais ou menos isso..."

Quando perguntado sobre a forma com que se deu o ingresso como professor, lembra de detalhes e saboreia no contar os momentos vividos no passado: "o ingresso na docência foi muito importante. (...) foi assim, eu tava no dia da minha formatura no dia 27 de julho [domingo], até ali eu tava praticamente empregado numa empresa que vendia equipamentos hospitalares e dava manutenção (...) já tinha passado por uma bateria de... seleção (...). O cara que tava se formando que trabalhava nessa empresa disse: 'Oh cancelaram as vagas'. (...) na segunda feira eu tava mandando currículo para tudo que era lugar (...) peguei o jornal de domingo na terça-feira de manhã, fui na PUC (...), fui lá na biblioteca, aí tava lendo o jornal, (...) pegando os classificados, eu achei nos classificados uma escola procurando um professor de eletrônica, adivinha quem era a escola? (...) Mesquita. E aí a entrevista era para ligar, para marcar para Quarta-feira a noite... isso era na terça, eu olhei aquilo ali: 'já pensei em ser professor!', mas espera aí um pouquinho, me formei domingo, aí fiquei assim: 'tá o que eu faço, que eu não faço, aí liguei para cá'.

Como não havia arrumado emprego até então, decidiu participar do processo de seleção de professor mais "por descargo de consciência". Colocou o currículo em baixo do braço e foi para a entrevista.

Participou do processo de seleção, da entrevista coletiva, respondeu às perguntas e foi embora com o sentimento de que não havia sido selecionado. Mas... "entrei no ônibus eu disse assim, ai me veio um pensamento na cabeça assim né: 'Tal, e se te chamarem (...) para dar aula?' Aí eu disse assim: 'se me chamarem para dar aula, o que que eu faço?'. (...) No dia seguinte eu fui almoçar com a minha irmã, ela disse assim: 'O que é essa tal de Escola Mesquita?'. Eu: 'O que?'. 'É um tal de Mesquita, Escola perece, um negócio assim'. Eu, eu disse: 'Ah eu fui fazer uma entrevista lá. Mas porque?'. 'Não, tu tem uma reunião hoje de tarde, tu tem que estar lá as vinte pras...' (...) não sei se era vinte pras seis. (...) e eu: 'Não pode ser, me chamaram!'. (...) então fui para casa, tomei um banho, peguei o T4, cheguei aqui tal, aí me chamou a guria do SOE. (...) vamos lá na sala dos professores, que eu vou te apresentar, entrei na sala assim: 'pessoal esse aqui é o professor Sandro, o novo professor de Análise de Circuitos' e eu olhei para ela: 'Tu tem certeza?'."

Manifesta que, apesar do espanto e da surpresa por ser o mais novo professor e a conseqüente sensação de insegurança, foi recebido pelos colegas professores de forma acolhedora. No mesmo dia foi apresentado para a turma como o novo professor que substituiria um professor afastado por questões de desentendimento com os alunos e recebeu a notícia que tinha onze dias para preparar as aulas e começar o trabalho na escola com a turma.

Foi para casa e iniciou a preparação de um desafio: o desafio da primeira aula. Um desafio que o fez pensar e refletir: "se eu entrar na sala e conseguir falar, tá ótimo". É o pavor da véspera de assumir os primeiros momentos da docência. É também a lembrança de um momento de nervosismo, de tensão, de medo: "ai entrei na sala de aula e fui dar aula né, e... mas (...) pra minha grata surpresa, eu comecei a falar, fiquei nervoso, a perna tremeu um pouco, mas daqui a pouco passou. Aí, era um conteúdo lá, comecei o conteúdo, pá, pá, conteúdo vai, vai, perguntava para um, para o outro e tal: 'Vocês tão me entendendo o que eu to falando?'. 'Não, tá, tá bom, pode ir tocando'. Aí fui, dei aula, aí no final da aula um aluno disse assim: 'Ah graças a Deus uma aula, que aula boa, eu tava esperando isso faz tempo!'".

É a lembrança de um tempo de passagem: do tremer da perna transfigurado no primeiro passo da afirmação da docência. Uma afirmação que pode ser expressa pela seguinte reflexão: "Logo no início da docência, numa determinada aula, contei uma piada e fiquei espantado com o que observei: uma parte da turma riu, uma parte não entendeu e outra parte ficou brava. Pensei: o que é isso? Que universo é esse onde estou? Naquele momento tive uma noção da heterogeneidade da sala de aula e das diferentes reações que podem surgir, das diferentes formas de pensar e aprender."

E conclui dizendo: "As diferentes situações que vivenciei em sala de aula me deram a oportunidade de melhorar como pessoa, como ser humano."