O ingresso na docência também é tempo de afirmação, de permanência na docência, das motivações para continuar dando aula e, assim, de exclamar a docência na pessoa a partir dos próprios alunos e colegas.
“(...) os alunos vieram me perguntar se eu gostaria de continuar dando aula. Ora, que pergunta! Era afirmativo né, eu disse: Olha, eu tô aí né, eu tô precisando trabalhar e é claro que eu gostaria de continuar dando aula, né, mas isso não depende de mim e tal né (...) E um belo dia alguém, um colega da escola, professor da escola me disse, me perguntou: tu gostaria de continuar dando aula aí?" (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 652-657)
Ingressar na docência motivado por um abaixo assinado dos próprios alunos é uma forma de afirmar o trabalho, uma nova profissão e, fundamentalmente, afirmar a própria docência na pessoa, ou seja, a-firmar-se como docente.
“E pra satisfação minha eu fiquei sabendo que os alunos estavam fazendo um abaixo-assinado. Isso aí eu acredito assim que foi ápice de tudo! Porque fizeram, as três turmas fizeram o abaixo-assinado” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 669-672).
Para o professor, a mobilização dos alunos através de um abaixo-assinado é ilustrativa no sentido de perceber a importância de como a docência pode ser embalada pelo outro - neste caso os alunos - e de como deixa suas marcas e vestígios na perspectiva de se ver e ver a docência. São marcas de satisfação que a memória não permite esquecer, já que isso foi o ápice de tudo!
Outras marcas do a-firmar-se professor também são manifestadas pelo Professor Ademar quando responde, hesitante e pensativo, a pergunta de quando ele se deu por conta que ficou professor:
“[silêncio prolongado] Eu acho que [pausa prolongada] ...o que ficou marcado na minha vida aquele dia que o cara disse: Ó, tu vai ser professor!!!” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 252-253)
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Não são poucos os estudos de biografias de professores que tratam da questão da escolha, ingresso e opção pelo magistério. A categoria escolha profissional na docência é assunto de vários autores como Ferreira, Nóvoa, Oliveira, entre tantos outros. Embora não seja nosso objetivo aqui abordar as especificidades de tais estudos, reconhecemos seus esforços analíticos e reflexivos.
Assim sendo, percebendo a importância da categoria escolha profissional, refiro - como fechamento desta primeira carta - à perspectiva da decisão, do decidir-se pela docência. Nesse sentido, faço aqui menção a um conto de Calvino (1991) chamado "A história do indeciso". Nesta fantástica história, que tem como cenário uma cidade - onde todas as partes se conjugam, as escolhas se contrabalançam, onde se enche o vazio que existe sempre entre o que se espera da vida e aquilo que nos toca - em que um jovem em permanente estado de impasse, vive a constância do encruzilhamento e das bifurcações que o tensionam sistematicamente, impondo-lhe o tormento da escolha; um jovem que tinha por costume deixar as coisas seguirem, de modo que quando chegar a uma encruzilhada não será ele a escolher o caminho.
Chegando na cidade, onde só se é admitido por meio de uma escolha e uma recusa, aceitando uma parte e renunciando ao resto, o jovem que já havia vivido o impasse da decisão no âmbito do amor e do casamento, se vê implicado noutra escolha. Recebido por um Anjo, este diz: "aqui terás o que pedires". Se o pedir para o jovem não é tão difícil - talvez o mais difícil seja ser capaz de exprimir um desejo sensato -, sua verdadeira tormenta é a escolha após o pedido, já que lhe são oferecidas duas opções. "Tenho sede", diz o jovem. E o anjo responde: "Só tens de escolher de que poço queres beber".
A cada decisão, a cada escolha a vida se desencadeia em múltiplas possibilidades. Para o jovem do conto, as inúmeras possibilidades o imobilizam. A cada encruzilhada, bifurcação da vida, os caminhos se alargam e o não decidir por nenhum dos caminhos se configura em recusa da escolha - nem por isso não é uma decisão - é a decisão pela indecisão. Se decidir por um caminho afeta a vida, não decidir por nenhum dos caminhos também afeta. "Por não teres escolhido, impediste minha escolha".
Decidir-se pela docência é afirmar-se professor. Recusar-se docente, também é decidir-se, é escolha, a escolha pela negação da docência em si. Se para alguns professores há uma decisão pela profissão e a incorporam no seu dia a dia, no seu fazer e no seu ser, para outros, a docência não é uma escolha, eles são, literalmente, escolhidos. No entanto, se por algum motivo ingressam na docência, se por algum motivo suas vidas se entrecruzam com a docência e com a escola, independentemente das escolhas pela permanência nessa atividade, sentidos de vida são tecidos e, fundamentalmente, muitas vidas são afetadas, já que decisões foram tomadas, mesmo que sejam recusas e negações da docência.