(2) O ritual das emoções

Se o evento da torta liga a docência consigo mesma, pelo simples prazer de estar-junto com o outro, muitos outros episódios vivenciados no cotidiano da escola também podem ser concebidos como potencializadores ou despotencializadores das relações gregárias.

Presenciamos na escola inúmeras situações de conflitos. Para Maturana, os conflitos e problemas são sempre uma encruzilhada emocional. A escola é um espaço de intensa combustão emocional. A escola é um lugar de constantes conflitos e de fortes entrecruzamentos emocionais, dificilmente geridos pela razão. Registrei um fato no Diário de Reflexões:

"(...) fui para minha sala e quando entro pela porta vem em minha direção uma professora com os olhos encharcados e muito irritada. Convido-a a entrar para conversarmos. Aí ela 'despenca' e chora, está muito brava e me relata a situação ocorrida com um professor sobre a reserva da churrasqueira no final de ano. (...) Lembrei-me de Maturana onde diz que 'os conflitos não estão no âmbito da razão e sim no âmbito da emoção. Os conflitos e os problemas são sempre uma encruzilhada emocional'. Diz Maturana que as emoções são condutas relacionais e que quando se escuta uma mesma palavra a partir de emoções diferentes, estas podem gerar conflitos. E aí estava gerado o conflito, e não existiam palavras que remendassem o ocorrido e as emoções aí geradas. Havia mágoa, ressentimento, raiva e ódio. A possibilidade do entendimento estava reduzida e pelo visto a impossibilidade de diálogo está instaurada pela voz e pronúncia: nunca mais quero vê-lo na minha frente. É mais do que um pronunciamento é um decreto da negação da existência do outro, e as emoções têm papel central no episódio e em conseqüências posteriores." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 22 de novembro de 2004).

Na perspectiva de Somé (2003, P.119) os conflitos são bênçãos:

"São dádivas para nos ajudar a avançar. É por meio do conflito que ganhamos conhecimento de nós mesmos e descobrimos novas situações para pôr em prática nossos dons"
Para a autora, o "conflito não deve ser nutrido, mas ouvido". Tal compreensão se localiza na perspectiva terapêutica, da cura através das atitudes e do auto-conhecimento viabilizado pelos conflitos que estamos envolvidos e imersos nas relações, sendo que é através do ritual que se busca o equilíbrio das situações sociais e relacionais conflitivas. Embora tenha feito a escuta da dor e do conflito expresso[1] pela professora, não aconteceu o ritual que pudesse reestabelecer o diálogo entre os professores envolvidos no conflito. O conflito permaneceu, ressentimento e mágoa ficou. Talvez até tenha sido alimentado, talvez tenha crescido e ecoado.
Se, como se percebe na manifestação da professora, o conflito instaurado inviabiliza o entendimento e o diálogo, pode-se também pensar que existe, nessa encruzilhada emocional, um forte desejo de vingança.

Para Maffesoli (2004, p.124):

"o espírito da vingança pode ser entendido como uma experiência dessa 'religação', uma forma de solidariedade, de participação na comunidade. Alguma coisa foi perturbada na ordem social, é preciso consertar. A vingança como 'ato reparador e salvador' é algo que pode parecer paradoxal, mas, sem justificar seus aspectos criminais, é preciso reconhecer sua dimensão ética. Ela cimentou um corpo social."

Negar a existência do outro como conseqüência de uma situação de conflito, para além dos sentimentos de raiva e mágoa, é uma ação reparadora para com o provocador do ato do conflito. As emoções geradas pelo episódio conflitivo se transfiguram em vontade e ato de vingança, num desejo de consertar o que foi perturbado no conjunto das relações sociais. A vingança, como uma necessidade de realizar um acerto de contas, é compreendida em sua dimensão ética e de 'religação' junto ao corpo social.

Assim como a vingança, a fofoca também liga. A fofoca circula subliminar e silenciosamente nas relações, constituindo-se em fluxos discursivos que estão nos subterrâneos das relações emocionais na escola. A fofoca flui, escoa no subsolo da escola. Também conhecida por "rádio corredor" ou "rádio tamanco", a fofoca soa e vibra em todos os recantos da escola. Sua freqüência pode ser sintonizada em tempos, momentos e cantos mais recônditos da instituição, nos corredores, nos laboratórios, nos setores, na sala dos professores, nos aparelhos e nas linhas telefônicas, nos finais de semana, até mesmo na e-fofoca (fofoca por e-mail). Ela não tem dia, hora nem lugar para se manifestar, basta ter duas ou mais pessoas para que possa ser alimentada, ganhar vida e forma.

A fofoca é sempre mediada por personagens no plural e só é interrompida na medida em que o interesse comum cessar. Não há dúvidas que a fofoca mantém conectados seus atores e autores, mediados por uma relação ética. Existe uma ética da e na fofoca. A fofoca é uma manifestação ética.

Considerando a origem da fofoca, ela sempre é gerida, gestada e produzida na relação. O simples fato de se estar escutador da fofoca já é o suficiente para fomentá-la e, assim, estabelecer uma relação de compromisso, de confiança, de cumplicidade compartilhada no sigilo. É daí que provém a ética da fofoca. Nesse sentido, podemos pensar que o escoamento da fofoca é sustentado numa regra fundamental, ou seja, não revelar o fluxo criador original, não revelar de onde provém, de onde procede e quem a desencadeou. Revelar a procedência é romper uma relação de confiança, quebrar o jogo, em outras palavras, traição.

Mas há também outros personagens na fofoca. Existem aqueles que, dependendo da circunstância em que se encontram na dinâmica das relações no cotidiano e de poder na escola, são conhecidos por "jogarem nos dois lados", ou em vários lados. Aqueles que são conhecidos por "roerem as duas pontas da corda". Essas figuras são as pontes que conectam os pólos, que amarram outros fios e estabelecem outros nós. Também regidos por interesses diversos, circulam e transitam livres por todos os grupos e pessoas, fazendo se propagar ainda mais a fofoca. É a fofoca da fofoca. Essas pessoas são pontes que podem ligar o subsolo e o invisível com o instituído e o visível. Podemos chamá-los, sem querer ser pejorativo, de fofoqueiros da fofoca.
A fofoca também pode ser compreendida por se constituir enquanto função de socialidade, enquanto finalidade de democratização dos fatos relacionais e emocionais através de uma imprensa livre e ao mesmo tempo secreta. Para se ter acesso a esta imprensa é preciso ter a senha, isto é, respeitar a ética da fofoca. Noutra perspectiva, é constituinte da fofoca a capacidade de metamorfoses e mutações do próprio episódio original. Alimentada, a fofoca pode ganhar vida própria e, assim como o telefone sem fio, ela pode configurar uma abismal incoerência entre o episódio original e a narrativa que, mediada pela fofoca, pode ganhar dimensões desproporcionais, e desencadear reações inimagináveis na medida em que os ciclos se completam, se seus fluidos chegam a respingar naquele que é o protagonista principal no cenário da fofoca: aquele do qual se fofoca.

Fofocas são como fios a tecer o cotidiano da escola através de suas agulhas afiadas. Se, por um lado, seus fios e teias estabelecem sistematicamente, conexões entre múltiplos personagens, por outro, estes mesmos fios e teias podem enforcar e algemar os atores envolvidos, ou como diz o ditado popular: "se enforcar com a própria corda" ou "ser picado com o próprio veneno". Assim, as teias e os múltiplos entrelaçamentos da fofoca, por mais paradoxal que pareça, constituem um dos sustentáculos da vida na escola, já que estabelecem relações de agregação e vínculo. A fofoca é cimento, cria corpo social, é catalisador de relações.

Na escola, visualizamos também a presença de manifestações de descomprometimento com os destinos da escola, de tirar o corpo fora, da crítica destrutiva, de repassar a responsabilidade pelo fracasso na aprendizagem dos alunos e das condições de ensino. Visualizamos a presença do discurso anti-pedagógico, anti-aluno e corporativista que, dependendo das condições de possibilidade e circunstância, se propaga e se potencializa.

Se, por um lado, é possível de se perceber que na escola os sujeitos estabelecem relações de solidariedade, de apoio e cooperação, por outro, podemos afirmar que convivem com elas, simultaneamente, outras manifestações como a intriga e a disputa: complôs, panelinhas e grupos que se articulam para "puxar o tapete" de alguns e de outros grupos. Isso não é novidade nas relações e na convivência entre as pessoas. Na escola não é diferente.

São fluxos que escorregam livres nos subterrâneos das instituições. Disputas de poder implícitas que tornam-se explícitas nas diversas emoções manifestas. Manifestações como de "pegar no pé", de "operação tartaruga", de intransigência, de incapacidade para escutar o outro, etc.. Não é preciso ter uma sensibilidade aguçada, ou mesmo ir longe na análise, para perceber quando o clima na escola não está bom, quando a energia não flui. Seja uma decisão da direção ou um discurso atravessado e acalorado no corredor, seja a falta de comunicação num encaminhamento ou mesmo a falta de algum recurso para o ensino, para poder gerar e ser desencadeador de reações diversas nos sujeitos que fazem a escola, sejam elas reações de resistência ou de comprometimento na solução dos problemas cotidianos da escola.

"é possível perceber nas vivências do cotidiano, de forma subliminar ou explícita, a expressão de tais éticas que, compreendidas ou não, aceitas ou não, perpassam e definem relações, movem conflitos, alimentam recusas, cimentam vínculos gregários, enfim, potencializam e expõem singularidades presentes nas instituições." (BEDIN, 2004, p.163)

Percebendo e sentindo o clima e a energia dos diferentes grupos de professores que freqüentam diariamente a sala dos professores, fazendo dela um espaço de fortes emoções, lugar de debate, de concordâncias e discordâncias, cada dia da semana é uma escola. A cada dia na escola deflagra-se uma energia e um clima peculiar que varia conforme mil e uma variáveis, conforme as pessoas que ali se encontram e as emoções que dali fluem. A escola é um caldeirão de emoções, que fervilha, que borbulha, que flui, configurado pelas pessoas que se reúnem, de acordo com o dia, com as falas que circulam, com os humores que se constituem, com os eventos e episódios que ganham vida e forma.

É do cotidiano da escola que brotam e germinam flores coloridas e perfumadas de afeto e generosidade. Assisti e presenciei inúmeras. Pude perceber por parte de muitos professores situações de compreensão das dificuldades dos alunos, que muitos anos afastados dos bancos escolares e se dispondo a retornar em busca de uma formação profissional, necessitam antes de tudo serem acolhidos e valorizados nos saberes que trazem da vida e da atividade profissional que realizam. Muitos desses alunos trabalhadores da indústria, exercendo funções desgastantes fisicamente em turnos e horários pesados. Assim, se o sorriso acolhedor, o gesto fraterno, a escuta que de fato escuta e o simples "boa noite" podem se transfigurar em forças revitalizantes e potencializadoras das relações, o inverso também é verdadeiro.

Assim como Bedin (2004, p.157), também pude captar o fluir de emoções desencadeadoras de posturas perturbadoras e desagregadoras das relações de convivência:

"Elas também fluem soltas, livres, incontroláveis e se mostram de múltiplas formas no dia-a-dia, podendo suas faces ser vistas nas manifestações de agressividade, aflição, indiferença, desgosto e tristeza, revelando emoções que sobrevivem no recôndito mais profundo de cada um, como o ressentimento, o ciúme e a inveja. Emoções que promovem a interdição e a negação. Quase sempre o invejoso age na obscuridade(...). Invariavelmente espalha o veneno e provoca estragos nas relações. A fofoca é um poderoso instrumento de sua ação. A intriga, outro."

Assim como o abraço acolhedor e o gesto fraterno, tantas outras posturas e ações se fazem presentes nas relações. Convivemos na escola com situações de truculência, intolerância, rivalidades, omissões, indiferença, descompromisso, desprezo e outras energias desmobilizadoras que emergem das relações. Entendo que tais posturas estão empapadas de emoções éticas, já que manifestam múltiplas maneiras de como cada sujeito se afirma e se assume docente, se relaciona com o mundo, a escola, os outros e a vida.

Assim, sem pretender fazer uma leitura moralista das manifestações que se configuram no cotidiano da escola, - para além daquilo que pode ser considerado bem ou mal - o que ali se passa, o que ali se vive e se manifesta. Pode ser mostrado como aquilo que é, que se mostra na relação com, na convivência, aquilo que liga e adere na escola.

Captei e percebi múltiplas e variadas relações e emoções éticas que se conectam com imagens de professor. Assim como o prazer de ensinar se constitui como motivador do estar-junto na escola, a vingança, que não deixa de grudar, também estabelece nexos e teias. Ambas são consideradas éticas pedagógicas pois criam uma estética, um estar-junto, vibrando numa mesma perspectiva. Trata-se de emoções que se manifestam nos interstícios da escola, e que, por sua vez, não deixam de configurar um jeito de ser docente.

Como um radar que procura captar as irradiações manifestas nas relações, pude perceber que convivem, simultaneamente, múltiplas formas, cores e jeitos que configuram o ser e o estar docente na escola de educação profissional. Se a presença de uma ordem escolar e institucional ganha contornos mais ou menos visíveis e estruturados, viabilizados por relações de hierarquia, de funcionamento, de organização, de estrutura curricular, de projeto pedagógico, de tempos e espaços institucionais, não há como negar a existência de múltiplos poderes paralelos e subterrâneos na escola. Trata-se de um fluxo que se dissemina, que cria e constrói imagens e idéias de ser e estar na escola, de ser e estar docente.

[1] Compactuo com a perspectiva de Somé (2003) quando ressalta: "Dizem que os problemas ficam com medo quando são expressos. Quando você fala sobre os problemas, eles começam a odiá-lo. (...) Elas [as pessoas] sabem que, mesmo que não possam resolver a questão de imediato, o simples fato de a terem envolvido por palavras pode fazê-la [a incomodação] fugir." (p.126)