Do Per-curso Metodológico

"Tornar mais visível e explícito o percurso da pesquisa, eis o desafio importante e tão bem destacado pela Banca Examinadora. (...) Estou me dando conta que um dos "nós" dessa "teia" da pesquisa (e essa é uma metáfora potente para compreender o processo de sua construção) é (...) sobre a importante explicitação do percurso que a pesquisa vai tomando, seus percalços, surpresas, impressões, reflexões, dificuldades, encaminhamentos, etc." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004).

Inicio este item com uma citação do Diário de Reflexões, por mim escrito poucos dias depois da Defesa da Proposta de Dissertação, onde um dos aspectos destacados pela Banca Examinadora foi a importância de se explicitar o percurso da pesquisa. O dispositivo ou o instrumento encontrado para tal tarefa foi o Diário de Reflexões que foi adotado com o intuito de refletir sobre as dimensões empíricas, teóricas e metodológicas da pesquisa. Por quais trilhas e estradas me aventurei? Por quais mares e oceanos naveguei? Quais foram os des-caminhos da pesquisa?

"Um DIÁRIO DE REFLEXÕES empírico, teórico e metodológico para dar conta de forma mais ampla, incluindo o cotidiano, o campo empírico, mas também que dê conta de reflexões e impressões metodológicas, das trilhas, caminhos, encruzilhadas e escolhas, bem como das dimensões teóricas que se relacionam com o olhar, com a metodologia e os dados empíricos." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004)

Permiti-me percorrer alguns desvios. O desvio como um per-curso, como para Benjamin (apud Gagnebin, s/d, p.87), "Método é desvio". Permiti-me caminhar acompanhado de um certo despropósito, deixando-me levar com a pesquisa e suas sur-presas. Embora tendo um propósito como este de escrever a dissertação e realizar uma pesquisa, exercitei uma forma de pensamento, de leitura e de interpretação distante de uma perspectiva segura de si mesma, com uma meta e alvo claros, bem como de um itinerário rigidamente consolidado a dar seus passos certeiros. Procurando despir-me de convicções e intenções asfixiantes, concebidas de antemão, tracei contornos e leituras daquilo que me foi aparecendo, buscando assim novos significados e interpretações, procurando contemplar e mostrar os sentidos por mim elaborados e construídos. Não quis percorrer o caminho da meta definida a priori, pois esta seria simplesmente traçar uma linha reta, o caminho mais curto entre dois pontos.

"(...) velejar 'à deriva no rio da existência' (...Roberto Piva), do que serem maquinistas de um comboio com um destino certo, já que os trilhos da estrada de ferro não permitem desvios, mudanças de rotas ou saltos. (...) navegar lendo as rotas cravadas no céu interior, do que se deixar levar pelas paralelas de ferro que não chegam a lugar algum." (HARA, 2004, p. 101)

Reconheço, percorri alguns desvios e o Diário de Reflexões permitiu o "despropósito" da escrita: o desvio do pensamento. Parafraseio "Deixa a vida me levar" de Zeca Pagodinho, me inspiro, me atrevo e me atiro, Deixa a escrita e o pensamento me levar, na perspectiva da renúncia de um porto seguro e previsível, trazendo como ventura a possibilidade de saborear o pensamento em sua complexidade, desgarrado de formas de se pensar a priori.

É preciso considerar, no entanto, a diferença entre rigor e rigidez. Não entendo que fazer ciência seja sinônimo de rigidez, antes seu contrário, ou seja, é desenvolver um olhar aberto e sensível ao novo, ao inusitado e, porque não dizer, ao invisível, sem querer tornar o mundo decifrável e visível, submetendo a tudo e a todos à lógica da razão racionalizante. Refiro-me à possibilidade de fazer ciência e desenvolver uma metodologia empática, sabedora da subjetividade do pesquisador[1], intuitiva, acariciante e nem por isso não recheada de paixão, vigor e rigor. Ou como diz Leminski (1999, p. 45): "Sem abdicar dos rigores da linguagem precisamos meter paixão em nossas constelações". Ou como diz Maffesoli (1995, p. 104) "um pensamento que saiba aliar o rigor da atitude científica, ou pelo menos acadêmica, e a sensibilidade colhida nas próprias fontes da vida."

Então, sem abdicar dos rigores, foi necessário ampliar e lançar mão de outros e diversos recursos para elaborar o caminho e o percurso metodológico, a interpretação e a análise, no sentido de dar conta das questões e do problema que o estudo foi apresentando à medida em que fui me aprofundando na pesquisa.

Assim sendo, para dar conta das questões e do problema de investigação - como se constituem e se manifestam os processos de identificação e as éticas na docência da educação profissional - o estudo foi desenvolvido procurando as marcas e os vestígios que possam capt(ur)ar tais manifestações no estar-junto e no relato da docência.

Durante a pesquisa, busquei o apoio e a contribuição de vários autores. Maffesoli e Maturana me auxiliaram no aprofundamento das noções de processos de identificação, do estar-junto e das éticas, bem como na perspectiva epistemológica da pesquisa, quanto aos fundamentos de um jeito de fazer ciência. Além deles, a presença de outros tantos autores foram indispensáveis no sentido de ampliar o meu olhar de pesquisador, afetando sobremaneira o que considero como os des-caminhos da pesquisa. Entre tantos, Calvino, Nietzsche, Benjamin, Baudelaire, Morin, Rancière, Somé, Hara. Sobre os enfoques da docência na educação profissional, tive certa dificuldade em encontrar estudos que a tratassem na perspectiva que trato. No entanto, autores como Tardif, Ferreira e Oliveira foram importantes. Já sobre a perspectiva metodológica, a literatura vasta sobre as histórias e relatos de vida, imaginário e memória, a partir de Bosi, Benjamin e Oliveira foram fundamentais.

Porém, a fonte principal da pesquisa foram as entrevistas e relatos de vida dos docentes, gravados, transcritos e repassados aos mesmos para a respectiva correção, exclusão e acréscimo, bem como o Diário de Reflexões alimentado sistematicamente no cotidiano da escola e das leituras realizadas.

"Entendo que esta configuração enquanto teia que será tecida junto, em sua integralidade, considerando questões empíricas, teóricas e metodológicas possibilitará, enquanto prática de pesquisa, um novo jeito de tecer o trabalho analítico, tornando mais explícita as trilhas e caminhos da pesquisa. É, de fato, um movimento complexo, pois é tecido junto: o empírico, o percurso teórico-metodológico com o trabalho analítico". (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004)

Situamos nossa abordagem na perspectiva de um olhar que procura ver a complexidade dos fios em que está tecida a vida, seu ciclo, seu movimento.

"O desafio do pesquisar no movimento é que o pesquisador não olha um tecido pronto, procura aproximar-se do movimento em que o tecido vai sendo feito. Mergulha na multiplicidade dos fios em movimento, buscando compreender a trama que vai sendo urdida. Como olhar desse lugar do 'em se fazendo' (...)?" (Fontana, 2000, p. 70-1)

Nessa perspectiva, vale salientar que o estudo procurou levar em conta não só o corpus produzido pelo evento da entrevista, ou seja, um texto produzido na entrevista-diálogo, mas também as diferentes sensibilidades, pistas[2] e caminhos reflexivos que fui evidenciando e mostrando no Diário de Reflexões. Nesse sentido, busquei captar o dito, o anunciado e o não-dito, o não-anunciado, isto é, não apenas o relatado em si mas o que ia para além dele mesmo, procurando perceber inclusive os silenciamentos, as reticências. Busquei potencializar um olhar investigativo das ações, das posturas, das concepções, dos processos e das lógicas que fundamentam as práticas e trajetórias docentes ancoradas no ético, no estético, no amoroso, no afetivo, no generoso.

No que tange à entrevista-diálogo, enquanto evento e ritual de escuta da vida da docência, o primeiro passo foi estabelecer um contato prévio com cada professor, explicitando os objetivos e procedimentos da pesquisa, no sentido de obter seu consentimento e disponibilidade para a realização das entrevistas e relatos. Assim sendo, identificado o grupo de seis professores, e obtendo-se o consentimento informal para a realização das entrevistas, procedi aos agendamentos, tempos e locais propícios para a efetivação do evento do relato, como revelam abaixo dois fragmentos do Diário de Reflexões:

"Marcada na semana passada e confirmada ontem, a entrevista aconteceu na casa do próprio professor depois do seu convite para conhecer o seu apartamento novo. Marcamos a entrevista para as 9hs da manhã (...). Sentamos à mesa próximos da sacada, um lugar muito aconchegante e propício para um bom bate-papo e diálogo. Liguei o gravador e recomeçamos a conversar, agora mais dirigida pelo roteiro da entrevista. Expus o tema (...), os procedimentos e os objetivos dessa entrevista e da pesquisa. Imediatamente começou a falar e se colocando de pronto disponível para um bom diálogo". (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 1º de dezembro de 2004).

"(...) fomos procurar um lugar calmo para a entrevista. Estava muito quente e achamos que uma sala de aula seria ainda mais quente, além do agito dos alunos do ensino fundamental e médio dos jogos de Educação Física que estavam acontecendo na escola. Por isso, fomos no espaço nos fundos da escola, denominando "escolinha", que está parcialmente desativada. Pegamos duas cadeiras e uma classe e sentamos à sombra no pátio, no gramado, embaixo das árvores, isolados do barulho, com som de passarinhos ao fundo. Levei, para acompanhar a nossa conversa, o chimarrão, fiel companheiro e próprio para uma boa conversa e um bom diálogo" (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 23 de novembro de 2004).

Geralmente em local calmo, com tempo suficientemente disponível para um diálogo, as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas[3]. Na medida em que as transcrições eram concluídas, as mesmas eram enviadas aos respectivos docentes - de forma impressa ou por correio eletrônico - para que procedessem às correções e alterações dos relatos.

Os professores, viabilizadores das vozes e dos relatos de vida[4], que configuram o grupo são: Ademar Lino Kleinubing, 50 anos; José Flori Cardoso Prestes, 51 anos; Ricardo Leal Costi, 32 anos; Ronaldo Bianchin, 34 anos; Sandro Luiz Mattiello, 35 anos e Sidney Kossmann, 60 anos. Todos os docentes envolvidos na pesquisa estão cientes e autorizaram o uso das palavras e relatos de vida pelo pesquisador através da assinatura junto ao Termo de consentimento livre e esclarecido da pesquisa.

Nesse sentido, foram realizadas seis entrevistas. Cabe salientar que, no Projeto de Dissertação, optei, provisoriamente, por oito professores. Com o desenrolar da pesquisa e, fundamentalmente, com a riqueza dos testemunhos e dos relatos de vida que fui escutando, transcrevendo e refletindo, entendi que as questões centrais da pesquisa estavam sendo suficientemente esclarecidas; que cada professor entrelaça a história da sua vida de forma singular; que, se outros professores se incorporassem ao estudo, possivelmente novas abordagens e outros sentidos seriam estabelecidos no processo de confecção da análise investigativa; mas que, considerando o que me propus neste estudo, ou seja sua delimitação e os limites de tempo, a não realização das outras duas entrevistas em nada prejudicaria o percurso e a conclusão da pesquisa.

Assim sendo, no que tange às entrevistas e aos relatos de vida da docência, viabilizamos um percurso e um processo de pesquisa, no qual assim como Fontana (2000, p. 78):

"ouvi demorada e repetidamente as fitas, transcrevi nossos dizeres e tive a liberdade de selecionar parte de nossas palavras e compor com [os docentes] o texto que se segue. Os recortes foram meus, ainda que antes de sua divulgação tenham sido lidos e autorizados por suas personagens. Esses recortes ajudaram-me a delimitar o âmbito do estudo e seu alcance."

Simultaneamente ao processo de realização, gravação e transcrição dos relatos de vida, escrevi um volumoso Diário de Reflexões, que serviu de catalisador e articulador das questões que emergiram no caminhar da pesquisa. Um diário que tecia, simultaneamente, os fios das dimensões empírica, teórica e metodológica.

Concluído tal processo, um tanto trabalhoso, mas fundamental e imprescindível para a constituição de um corpus próprio para tal estudo, iniciei o procedimento de análise mais sistemática dos relatos, considerando como vestígios e marcas as concepções, afirmações, negações, adjetivos, expressões, imagens e referências identificadoras e indicadoras das manifestações éticas e dos processos de identificação da docência.

Procurei, assim, discutir e problematizar os diferentes sentidos presentes nesse material. Tentei, nos relatos e nas vozes dos docentes, captar os mais diversos sentidos dados ao ser, estar e permanecer na docência, bem como aos processos pelos quais esses docentes se identificam, se constituem e se tecem. Busquei então, o modo pelo qual cada docente se relata, se conta e se afirma enquanto professor.

Na etapa seguinte, me preocupei em responder às questões do estudo. Para tanto, enquanto procedimento analítico e interpretativo, uni às marcas manifestadas nos relatos de vida dos docentes, a reflexão elaborada no Diário de Reflexões, articulada àquelas oriundas da literatura e das discussões com colegas e orientação, as quais efetivamente, contribuíram no sentido de compreender as dimensões éticas e os processos de identificação, manifestos e anunciados nos testemunhos dos docentes e no estar-junto da docência da educação profissional.

Para a entrevista elaborei um roteiro, um conjunto de questões, guias provocadores do diálogo-entrevista. O guia das entrevistas se configura como um mapa da jornada, constituído a partir das questões temáticas, objetivos e problema de pesquisa. A partir da confecção do mapa da jornada, convidei seis professores a sentar em torno da mesa da pesquisa. Com cada professor uma jornada foi vivida, com cada professor um itinerário, um percurso, um caminho foi trilhado. Cada qual, a partir do mapa, seguiu seu próprio curso. Cada qual visitou lugares e espaços da sua história, vida e memória manifestadas no relato, em entre-vistas. Alguns, de forma singular e peculiar, se detiveram com mais detalhes em determinados pontos do mapa da jornada, outros reviveram e relembraram outros aspectos de sua vida, mas todos - sempre - regados e recheados de emoções, manifestadas pelo ato da lembrança de si: os "nós" na garganta. Alguns professores visitaram lugares com o sabor e a emoção da lembrança, outros silenciaram. Para alguns o sabor parecia ser de prazer, para outros de ar-dor ou de amar-gor.

"O roteiro aberto preparado no espírito da pesquisa tem possibilitado de fato um diálogo, uma conversa, às vezes interrompida e redirigida pelo pesquisador, às vezes aberta, solta, onde as lembranças puxam novas lembranças de um tempo de outrora, revividos juntos no momento do diálogo, com detalhes, relatos, convicções, dúvidas, questionamentos. Falar de si, do seu trabalho, daquilo que faz e vive possibilita muitos encontros e conexões consigo mesmo, saberes e expectativas, projetos e lembranças." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 1º de dezembro de 2004).

Coerente com a perspectiva proposta, o texto da dissertação está organizado[5] no sentido de apresentar, dispor e expor os contornos temáticos da existência da docência, embaralhando-os, entrelaçando-os no texto como se fossem cinco Cartas: Primeira Carta - Excl-ama-ções e sur-presas: o ingresso na docência; Segunda Carta - Marcas e vestígios: os primeiros dias de aula; Terceira Carta - Os processos e as teias de indenti-fic(x)ações: que professor sou eu?; Quarta Carta - Nega-ções e int-erro-gações: as turbulências e desestabilizações do ser docente; Quinta Carta - As a-firma-ções de ser docente: as sustentações éticas.

As Cartas representam questões temáticas enfatizadas junto aos relatos de vida, na perspectiva anunciada abaixo:

"(...) um aspecto destacado pela Banca foi a possibilidade de realizar uma entrevista 'temática', ou seja, não compor uma história de vida na sua integralidade mas de forma temática destacando aspectos como a escolha profissional, a formação, a permanência na docência, os 'matriciamentos', modelos, saberes que amparam seu fazer pedagógico, entre outros aspectos. Isto é, com questões mais dirigidas". (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 21 de setembro de 2004)

O mapa da jornada, aqui entendido como o conjunto das questões temáticas dirigidas pelo pesquisador, funciona como as Cartas do Tarô para Calvino (1991), onde em cada carta virada sobre a mesa - ou à pergunta do pesquisador - a vida se revela no contar.

[1] Tal perspectiva implica em não desconsiderar "que a subjetividade do observador desempenha na análise um papel que não pode ser negligenciado" (MAFFESOLI, 1998, p. 125), em outras palavras, "um olhar inquestionavelmente consciente da parcela de subjetividade que qualquer pesquisa ou análise científica comporta." (MAFFESOLI, 1998, p. 133-4)
[2] Na mesma perspectiva de Ferreira (2002, p.57) utilizamos o conceito "pista" no sentido de considerar que o estudo em sua dimensão empírica é como que um movimento de seguir pistas, de captar as marcas e vestígios que nos ajudam a compreender e a dar sentido às práticas cotidianas da docência.
[3] Cabe ressaltar que, assim como Oliveira (2003), destaco a importância do processo de transcrição das fitas da pesquisa de histórias de vida, já que é aí que se "transforma objetos auditivos em visuais, o que inevitavelmente implica mudanças e interpretação" (OLIVEIRA, 2003, p.154 apud PORTELLI, 1996, p.27), ou como destaca Thompson (1992, p. 292): "A pessoa que faz a fita também é a mais capaz de garantir a precisão da transcrição".
[4] Os nomes são verdadeiros e usados a partir da autorização e consentimento dos professores.
[5] Vale destacar que muitos estudos, que se utilizam da História ou de Relatos de Vida como perspectiva metodológica, ressaltam a importância e o cuidado em expor as histórias. Muitos estudos apresentam a vida das pessoas pesquisadas num continuum. Já aqui, o estudo está organizado de forma temática, ou seja, apresenta questões temáticas sobre os quais todos os relatos de vida são guiados a se manifestar. Esta é uma opção do estudo, considerando os limites e potencialidades daí provenientes.