"A dor e o sofrimento já não são uma objeção à vida.
Ao contrário, a dor está presente na vida" (HARA, 2004, p. 135)
"Como juntar as peças de minha
vida para formar uma imagem coerente? Como encontrar a trama básica
de minha história? (HILLMAN, 2001, p. 14-5)
"Aquele que escuta o narrador, em contrapartida,
participa da vida dele, a experimenta, numa escuta participativa.
Além disso, aquele que ouve histórias narradas experimenta um ritmo,
uma feitura artesanal". (MACHADO, 2004, p.10)
A narrativa da docência quer permanecer, perdurar, quer ficar, ganhar forma, traços e contornos. O poder estético e o encantamento do contar-se faz com que o escuta-dor mobilize dispositivos para recontar a história, a vida escutada. Ao fazê-lo, o escuta-dor se metamorfoseia, incorpora e assume o lugar de conta-dor-do-outro, recria e ressignifica a história sob nova perspectiva e olhar, já que este estampa na narrativa sua própria experiência de vida e imaginário. O escuta-dor mobiliza dispositivos que ressignifica e recria a história contada. A história contada e narrada permanece, novos conta-dores e escuta-dores são convidados a ressignificá-la e recriá-la. Trata-se de um recontar inacabado, inesgotável e infindável.
No que tange ao evento da entrevista, da conversa-diálogo, do ritual do encontro e de escuta dos relatos da docência, cada entrevista, cada encontro com a docência, viabilizado pela disposição em falar de si, de escutar e relatar a vida, é um momento singular. "Os rituais não são todos iguais; cada um tem o seu sabor" destaca Somé (2003, p.58). É um momento não só de estruturação metodológica do trabalho, mas fundamentalmente de estarmos-juntos pensando, refletindo, lembrando, sistematizando, ressignificando os tempos, a vida, a docência, a escola. Escutar a docência, nas suas mais diversas manifestações é captar suas pulsações, seus ritmos e suas cores. É um fluir de emoções e lembranças que constituem e afirmam as várias e diversas formas e jeitos de ser docente e estar na escola de educação profissional. Trata-se de um processo que Hara (2004, p. 62), referindo-se a Benjamin, destaca como "expedição pelas profundezas da lembrança".
O relato, em seu início marcado pela formalidade das perguntas do entrevistador e das respostas dos entrevistados logo se transforma numa volúpia de palavras, de lembranças, de pensamentos de quem relata a sua vida. Lembranças trazem novas lembranças. Detalhes do passado longínquo são contados como se tivessem sido "vividos semana passada", recheados de emoções, muitas vezes umedecidos pelas lágrimas e contados com voz trêmula.
As lembranças são como imagens separadas, que ao girarem no fluxo do diálogo e na mesa circular da pesquisa, tornam-se uma só, aqui e agora, passado ressignificado no presente, projetando um jeito de ser docente. O relato e a lembrança de si faz com que quem relata sua vida, se expanda para além de sim mesmo.
Trata-se de uma con-versa com a docência, com a sua vida e suas conexões possíveis. É uma perspectiva de escrever, escutar e fazer pesquisa. São os nexos e conexos. São os nós que conosco se epifanizam e se manifestam.
"qualquer coisa próxima, qualquer coisa íntima, é impossível sem um espaço ritual. Qualquer coisa que leve as pessoas a expressarem, umas para as outras, algo diferente de sua vida diária, toca no mundo espiritual, no mundo ancestral e é, portanto, um evento ritual" (SOMÉ, 2003, p.63)
Nessa perspectiva, fomos criando e gerindo um espaço sagrado: o ritual da entrevista. Fomos formando um círculo, uma mandala[1] onde nos reuníamos ao entorno da mesa circular da pesquisa.
Enquanto escuta-dor do outro, percebe-se um fluir de emoções quando da lembrança dos momentos difíceis, da dureza da vida. Lembrar deste passado também pode ser difícil, mas é valoroso saber que, apesar de tudo, a vida continua e que aqueles momentos geraram não só lembranças, mas gestaram a própria constituição da docência que hoje pára e se conta, em suas experiências, em suas durezas, em suas dores e alegrias.
"Estabeleci nexos e identificações, fui captado e capturado pela perspectiva do relato e pelos 'nós' estabelecidos e afetados com a minha própria caminhada, além, obviamente, dos acasos e circunstâncias. (...) Que conexões de possibilidade são oferecidas por um relato e uma vida? Que condições de possibilidades nos afetam com um relato como este? São 'conexões repletas de sentido'. Que provocações desencadeiam e nos afetam? Fui tocado e vibro quando isto acontece... sentidos são vislumbrados. 'A vida é inteira e não partida, a partilhamos, mas com os outros'." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 08 de novembro de 2004)
O fato dos professores do Ensino Técnico, via de regra, iniciarem sua carreira profissional na indústria ou em empresas de engenharia, os caracteriza e os constitui de forma peculiar - se compararmos, suponho, com os professores dos níveis de Ensino Fundamental e Médio -, levando tais experiências e vivências para a docência e para a sala de aula. As experiências de vida provocadas pela carreira profissional no mundo da indústria implicam e afetam a forma de se contar e de se relatar, como abaixo mostram os fragmentos de relatos sobre as muitas dificuldades enfrentadas e seus reflexos na família.
“Bom aí a minha vida virou do avesso também de novo. Foi um baque muito grande, uma demissão inesperada (...) Há! Aquilo faltou o chão sabe! Faltou tudo para mim!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 428-436).
“Então quando eu saí dali aí ficou difícil, o emprego, quatro filhos e eu fiquei de um lado para o outro. Eu sei que eu fiquei dois anos desempregado” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 447-448)
“(...) era uma coisa meio complicada aí na vida deles [os filhos] e na minha”. (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 308-310).
“Eu não conseguia mais emprego e a minha dificuldade maior em conseguir emprego era por causa da informática. Todas as vagas exigiam experiência em computador” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 456-458).
“(...) foram coisas muito difíceis de épocas que eu não tinha dinheiro pra tirar o xeróx do meu currículo para mandar para algum lugar, né. Então foi complicado”. (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 492-493).
Lembranças das dificuldades, das dores e sofrimentos, a passagem desse tempo que, embora dolorido, sofrido, quando lembrado hoje, mostra a superação de si, metas e sonhos de vida conquistados, a vida-que-deu-certo (NIETZSCHE, 2003, p.25). Esse é o ato do escuta-dor do outro, e tal dimensão da lembrança é manifesta em praticamente todos os relatos dos professores.
“Sofri muito. Sofri um monte mesmo. (...) eu falava tudo errado, eu falava caboclo, caminhava na rua olhando pras placa, olhando pro céu, ... olhando os edifício então era uma gozação. (...) Sempre a maioria vence né, e eu fui domesticado” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 16-20).
“(...) então assim ó, as dificuldades foram grandes, mas existia a vontade de superar aquilo. Todos diziam, naquela época se dizia, que estudando tinha futuro, e eu acreditava nisso. Se não tinha ainda presente, eu imaginava que tinha futuro.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 453-455).
“(...) mas isso são ossos do ofício que eu digo, são coisas que...é...nem tudo são flores. Tudo é assim na vida.” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 841-842).
Como ilustração desta idéia de que nem tudo são flores na vida, vale trazer as palavras de Cruz e Sousa (s/d) do soneto "Sorriso Interior"[2]:
" O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!" (p.195)
Trata-se da dor e do sofrimento transformado em uma bela flor de entusiasmo pela vida, ou como diz Nietzsche (2003, p.26): "aproveita acasos desagradáveis em seu próprio favor; o que não acaba com ele, fortalece-o". Nesse sentido, é possível relacionar com a perspectiva de vários estudos que mostram que dar voz às pessoas, pelo fato de serem escutadas, gera um aparente bem estar.
Assim como o cronista João do Rio[3] não me interesso pela descrição exata dos fatos como verdadeiramente se desenrolaram, já que a história narrada e relatada é sempre afetada pela imaginação de ambos, de quem a conta e de quem a escuta. Mais do que a verdade dos fatos, procurei, nas andanças pela escola e pela escuta da docência, a música que emerge do estar-junto e da vida na escola de educação profissional, admirando assim "o mistério das coisas visíveis". Um exercício de captar o fluxo subterrâneo e dançante da escola ou - como se refere o documentário Janelas da Alma - de "fotografar o invisível"[4]. Não pretendi desvendar todo o segredo, apenas mostrá-lo da maneira mais surpreendente possível, distante da lógica ordenadora e asfixiante da razão que dilacera a própria vida.
Mas então, o que é visível e invisível? O que tem concretude no relato e na existência da docência? E o que é inexistente? O que é possível de se fotografar do invisível? O que os olhos não vêem, mas se constitui no subterrâneo e seu fluxo? Existe, de fato, algum segredo, algum mistério que os olhos da razão não vêem? A intuição diz que sim! A intuição também diz que é tarefa impossível enjaular e capturar a integralidade de qualquer mistério, mas que é possível sentir e captar seus fluxos e contornos, e que estes não podem ser submetidos à lógica instrumental da razão. Então, como captar os fluxos secretos da memória não revelada e não manifestada? Como captar os silenciamentos e as reticências?
“A minha vida sempre foi meio tumultuada, tem coisas que aconteceram neste meio tempo que acabei não falando” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 298-299)
Esta frase é reveladora de que nem tudo pode ser submetido, de que nem tudo pode ser capturado e lançado para a visibilidade na vida da docência. Existem segredos e, possivelmente, continuarão a existir muitos outros, que ficarão bem escondidos nos escombros da memória.
"A memória é seletiva. Eventos são lembrados, detalhes são evocados outros são esquecidos, pois tudo não pode ser lembrado. O esquecimento tem um papel fundamental na memória. A memória permanece saudável por que tem a capacidade de esquecer, de regular e equilibrar lembrança e esquecimento. É humanamente impossível lembrar de tudo. Lembrar é, de certa forma, reviver o passado agora, em outro lugar, visto de outro lugar. Os professores selecionam pontos de sua vida, como um centelha de vida, ou um iceberg, que no relato é manifesto em detalhe da trajetória." (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 19 de janeiro de 2005)
O que terão os professores silenciado? Por que foram lembrados alguns eventos e outros não? Quais os mistérios e os segredos que permaneceram invisíveis à pesquisa e ao pesquisa-dor? O que permaneceu inexistente nos relatos? O que passa de "invisível" para "visível" na feitura dos relatos? O que passa a ganhar "existência" na tecitura da narrativa e na trajetória de vida destes docentes?
As do(lo)res e durezas, os sofrimentos, concretudes ou o pesadume (CALVINO, 1990) da vida são, de certa forma, concebidos pelos entrevistados como saborosas experiências e vivências. Trata-se da “capacidade épica da memória” (BENJAMIN, 1975, p.65). As lembranças de um tempo passado são revividas como fantásticas, como magníficas, como façanhas heróicas. É possível pensar que, no tempo em que foram efetivamente vividas, tais dores e dificuldades tinham um gosto um tanto mais amargo do que as manifestadas no relato, no ato de lembrar. No entanto, ao relatá-las epicamente, o vivido se transfigura, ganha cor, ganha outro sabor, dispositivo necessário para o processo de identificação e afirmação docente.
Assim, os relatos ilustram bem tal dimensão épica da memória, lembrando das dificuldades e durezas que o viver acarreta, mas que, apesar disso tudo, são experiências que merecem ser lembradas como exemplos de superação e de referência enquanto professor.
“Essa foi uma fase muito difícil, (...) é triste isso, mas faz parte da minha história, eu tinha que sair para a rua para não ver os outros comer, e voltar a trabalhar de tarde. (...) aquele pão d´água seco era o que eu tinha. As vezes me escondia atrás da máquina para ninguém ver, isso quando tinha né.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 124-131).
“(...) quantas vezes que tive que deixar de comer mas não deixar de estudar. (...) No momento que tu passa fome mas não deixou de estudar e que tu chegou aqui ganhando um salário mínimo, se tu não construiu muito mas alguma coisa tu construiu né... então isso é uma lição que eu trago para a sala de aula” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1250-1254).
“Minha vida era assim, trabalhava semana inteira e domingo eu descansava em casa. Mandava dinheiro para minha mãe, a vida era difícil, uma vida complicada ali.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 107-109).
A vida era difícil, a vida era complicada! E hoje deixou de sê-la? Provavelmente não, outras durezas e outras tristezas se apresentam ao destino. No entanto, não há dúvida que o passado foi ressignificado e aquelas dificuldades superadas, vencidas ou, pelo menos, foram coloridas e até saboreadas no tempo presente. Nesta perspectiva, Mário Quintana (1997) diz: “O passado é uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre, ainda quando foi uma lástima. A memória tem uma bela caixa de lápis de cor”.
É possível visualizar, nas memórias da vida profissional e do mundo do trabalho, manifestações de valorização do seu potencial profissional como uma forma de se auto-anunciar singular, exclusivo, diferente, um herói da sua própria vida e superação de si. O reconhecimento por parte da empresa ou do seu imediato superior é uma forma de auto-afirmação:
“(...) uma época lá que trocou um cara que era chefe de setor, (...) ele chegou e olhou assim: tu não é um cara para trabalhar em máquina" (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 111-112).
“Eu me lembro que as palavras dele foram estas: esse rapaz não pode estar na fábrica, tem que ser melhor aproveitado" (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 204-205)
O trabalho da memória sobre o mundo do trabalho, própria de um espaço de competição, onde apenas alguns se destacam e se sobressaem, evocam as lembranças dos episódios de glória, de reconhecimento. E as lembranças de exclusão, de dor, de desvalorização do sujeito no mundo do trabalho, onde estão? Guardadas em algum recanto da memória? Se forem lembradas as situações de exclusão, de dor, de desvalorização, como elas serão lembradas? Serão esquecidas, serão ressignificadas no ato da narrativa?
As lembranças de destaque e reconhecimento emergem para salvar o sujeito que relata, possibilita com que ele continue vivo e dando sentido ao seu viver, como a bela obra de arte resultante do delicado exercício de entalhar os sentidos e as tramas da memória, em que a teia que a sustenta é a vida. Assim, do ponto de vista da narrativa ou de quem conta sua biografia, o relato
"(...) não visa a descrição do passado 'como de fato foi', mas a sua retomada salvadora na história do presente. Um sujeito, podemos acrescentar, que não fala de si para garantir a permanência da sua identidade, mas que, ao contar sua história, se desfaz de representações definitivas e ousa afirmar-se na incerteza" (GAGNEBIN, s/d, p. 91)
O relato possibilita estabelecer os nexos e sentidos que dão suporte ao viver e à imaginação que ordena o caos da existência. Encontrar os nexos e conexos da existência, dos sonhos, metas e compromissos assumidos no viver, possibilita um belo exercício de amarrar os fios do passado no tecido do presente, com os nós que entrelaçam a docência na trama da sua trajetória.
"A gente tem compromissos com o passado, alguma coisa trouxe a gente até aqui, e tem compromisso com a gente mesmo né. A gente traçou metas, traçou planos, sonhou coisas. Acho que elas tão vivas ainda. Até de algum modo, a escola virou minha família, trabalho com eles, sofro com eles, vibro com eles...acho que tenho competência, tenho problemas, algumas coisas não consigo resolver. O que me move é a certeza que algumas coisas que eu esperava de mim eu consegui, coisas que as pessoas esperavam de mim também e construir minha história, minha trajetória." (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 541-547).
Assim, é possível de se verificar que o relato da docência produz múltiplas imagens, cheiros, vozes e lembranças que, se de um lado estão recheadas de paixão e prazer, de outro estão mergulhadas em dores, sofrimentos e desgostos que, além de criarem as condições de possibilidade para estabelecer sentidos de vida, são muitas vezes catapultadas no abismo do esquecimento.
[1] "A mandala é, literalmente, um círculo, embora o seu desenho seja complexo" (Dicionário dos Símbolos, 1982). Nesse sentido, mesmo compreendendo que o vocábulo mandala possa transcender a noção de forma circular, faço aqui seu uso na perspectiva daquilo que designa toda figura organizada ao redor de um centro, ou seja, sua forma redonda que direciona o olhar para o centro. Os círculos sugerem totalidade, unidade, o útero e completude, sendo que é possível pensar a mandala como uma representação geométrica da dinâmica entre o homem e o cosmo. Fazendo referência a dimensão circular da estrutura mandálica é possível dizer que a vida do homem é um círculo.
[2] "Sorriso Interior" foi o último soneto composto pelo poeta.
[3] João do Rio, cronista carioca, movimentava-se em todos os recônditos e cantos da cidade do Rio de Janeiro observando atentamente as pequenas e as grandes transformações ali operadas. Era um caçador infatigável de notícias e não se interessava apenas pela descrição exata dos fatos como verdadeiramente se desenrolaram. "Mais do que a verdade dos fatos, João do Rio procurou em suas andanças pelas ruas o lado épico, a poesia que brotava nas calçadas" (Hara, 2004, 176).
[4] Documentário “Janelas da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho – 2003.