ADVERTÊNCIA

Admirai-nos, surpreendei-nos
Algumas respostas podem ser encontradas aqui
Elas dependem de cada um, de todos nós, inclusive das letras enfileiradas
Esquecemo-nos um pouco dos livros, dos autores
Aqui você não vai encontrar um manifesto
Também não vai encontrar uma crença
Talvez isso aqui não seja nem ciência
(pelo menos aquela clássica com sujeito e objeto)
Isso é só um fluxo, um entrecruzamento
Encontros de vida
Quiçá contenha um pouco de poesia
Então aí vai um pouco de histórias de professores e da minha inclusive.

Rafael Arenhaldt
Outono de 2005.

Vou começar contando uma história. Faça o leitor e o escuta-dor sua própria apreciação. Quem escuta a história, enquanto um escuta-dor, se permite sentir e apreciar o sabor e a dor de quem a conta. Apreciar, saborear, sofrer e sentir junto, compartilhar as palavras e um pensamento que contornam sentidos de vida.

A história que conto é de vida: da minha, da implicação com a pesquisa, de como foram se configurando, se gestando e se produzindo os nexos de uma investigação, da busca das sur-presas e dos fluxos de vida da docência na escola de educação profissional.

Aventurei-me na busca e na compreensão da docência. Mergulhei na escola para perceber, para captar os fluxos de vida da docência na escola de educação profissional. Essa escola é o Mesquita[1] e os docentes que nela atuam. Utilizo nesta aventura o diário de reflexões e os relatos de vida, através de disposições metodológicas[2] como a empatia[3], a intuição[4], a escuta e o olhar sensível.

O gestar da pesquisa e o gestar-se na pesquisa, revela sobretudo um processo de construção de um pesquisador em formação que é também coordenador pedagógico. Trata-se de uma passagem, um deslize para outras identificações como assunção de estar pesquisador em formação. Quicá possam, o coordenador pedagógico e o pesquisador, fazerem-se juntos, mesclando-se como um. E este sou eu: um coordenador pedagógico que se aventura a pesquisar, a investigar, para um implicar-se e embaralhar-se no outro. "Esta é uma tensão que acompanhará o pesquisador" (BEDIN, 2002, p. 9)

Nesse gestar da pesquisa e do gestar-se na pesquisa, me permiti fazer outro olhar, outra escuta. Um olhar e uma escuta que deixa-se surpreender, sem um dever-ser. O olhar mirado e proxêmico, é um olhar adjetivado, não é qualquer olhar, é um olhar sensível, erótico e afetual. Enquanto pesquisador, imbuído por uma razão sensível (MAFFESOLI, 1998) na perspectiva de dar evidência ao testemunho da docência e ao registro denso do estar-junto, permiti-me sur-preender com o dado mundano, com a docência que se mostra, com a vida que é.

O lugar de onde falo é de dentro da Escola. Da Escola de Educação Profissional. É de dentro que olho, e é o que se mostra de dentro que focalizo. É dali que procuro captar o que se manifesta, o que se mostra, o que se epifaniza[5].

O pesquisador quer acertar o foco, ver coisas que na banalidade do dia-a-dia não se via. O pesquisador quer ver melhor, quer ver os detalhes, traçar os contornos, compreender as lógicas internas que sustentam o estar-junto e aquilo que liga, gruda e adere na docência. Quer ver e mostrar o que acontece na escola e o que constitui a docência na educação profissional. É uma postura muito mais contemplativa do que ativa, esta última própria do dever-ser. "(...) é preciso tomar a vida pelo que ela é" diz Maffesoli (1998, p.46). É um conhecimento erótico, fusional, uma sociologia acariciante[6] no sentido de perceber o que tem de fantástico e surpreendente, o que tem de banal e fútil na docência. De permitir-se surpreender com as histórias e memórias contadas e ressentidas, com os fluxos narrativos epifanizados na voz e no estar-junto da docência. De deixar-se supreender com os sentidos de (in)permanência e daquilo que impregna na docência. De captar os (dis)sabores, os (des)gostos e a (des)graça da docência. De capturar o que (des)motiva, (e)motiva, (des)mobiliza e o que (des)anima na docência.

É a partir das instigações do coordenador que o projeto de pesquisa se inicia, mas que vai se metamorfoseando. O pesquisador vai mudando e novas perguntas são apresentadas. Novas questões se colocam e o olhar sobre o que pesquisar também muda. As perguntas vão mudando porque o olhar vai mudando: esse é o processo de gest(aç)ão da própria pesquisa, são os tempos e os ritmos de quem se aventura neste processo de ser pesquisador.

Não me propus realizar um estudo sobre a formação ideal do docente na educação profissional. Não se trata de saber se precisa de formação pedagógica ou superior para o melhor desempenho de sua atividade. Poderia fazê-lo, mas não é o foco desta pesquisa. Poderia também perguntar: "Quem é o docente da Educação Profissional? Qual a sua identidade?". Poderia caracterizar a docência de diferentes formas, a partir das mais diversas máscaras e faces.

É de dentro destas questões que se gesta um novo olhar, ou da descoberta de uma nova qualidade do olhar[7] como diz Baudelaire (1988). Não um olhar fechado, determinado a priori, mas um olhar aberto e mirado ao novo.

"É preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outro meio de conhecimento" (ALMEIDA, 1998, p.24)

O trabalho, o exercício durante todo o percurso da pesquisa foi, de certa forma, o olhar na perspectiva de romper com a dicotomia razão e sensibilidade, e olhar o sujeito professor, com sonhos, desejos e projetos de vida. Ouvir sua voz, compreender seus gestos, refletir sobre sua atividade cotidiana e sua formação, sua trajetória de vida, sua relação profissional dentro da instituição escola, que é afetado e afeta a escola, que todos os dias lá está: esperançoso ou não, feliz ou não, comprometido ou não, mas lá está.

Escrever a dissertação nesta perspectiva é um desafio. Respeitar[8] a voz da docência, sem negligenciar a vida do narrador e nem reduzí-la a análises simplificadoras, é pressuposto epistemológico desta pesquisa. Fazer ciência e respeitar a vida manifestada como uma obra de arte e poesia é o que me proponho ao me aventurar nesta jornada com o outro, como escuta-dor, como pesquisa-dor.

Quem convido para sentar-se na mesa da pesquisa? Quem faz companhia nesta a-ventura[9] no oceano do conhecimento, do pensamento e das histórias da docência? Quem partilha e a-companha os des-vios e os des-caminhos da pesquisa? Quem partilha da a-ventura, a deriva, pelos labirintos da vida da docência? Com quem dialogo, escuto, escrevo e con-verso (dar voltas com) nesta empreitada da pesquisa?

Além dos docentes, autores e atores deste trabalho, de Maffesoli, de Calvino, agregam-se e incorporam-se novos participantes na mesa da pesquisa, que embriagam o pensamento e que potencializam o espírito, ou seja, a poética e a arte de Benjamim, Nietzsche, Baudelaire e outros. Trata-se da "vida como uma obra de arte", onde o "saber noturno" (HARA, 2004) pulsa em comunhão com um jeito de fazer ciência e conceber a pesquisa.

Sentir e experimentar a possibilidade trabalhada por Benjamin e Nietzsche de aproximar ciência com poesia, pesquisa com arte e o trabalho do pesquisador com o do artista. Fazem parte então dos dispositivos, instrumentos e do olhar do pesquisador todos artifícios próprios do artista como o belo, a beleza, a estética, o imaginário, o onírico[10].

"O pensamento é uma arte; o conhecimento que produzimos é uma tela que expressa nossas idéias; o ser do conhecimento (...) é um artesão que bricola, de forma singularizante, os saberes à sua volta" (ALMEIDA, 1998, p.21-22)

A cena visibilizada é a da mesa circular da pesquisa onde nos encontramos ao entorno. Nesse sentido, num primeiro momento, denominado "Dos encontros e identificações", apresento as impressões, sabores, sensações, emoções do pesquisador em referência ao evento da escuta da docência e suas relações com a forma e jeito que a docência se diz, se manifesta, se lembra. É uma reflexão empírica, teórica e metodológica da aventura de escutar a docência na escola de educação profissional. Além disso, ao final deste item, convido o leitor a passear pelas "margens" e "bordas" da dissertação, um entre-lugar onde apresento os atores e autores a partir do seu próprio testemunho.

Num segundo momento, com o título: "Da Escola dos destinos cruzados"[11], inspirado em Calvino, disponibilizo os relatos, a vida, os caminhos e os destinos da docência, através de um baralho de Cartas, onde apresento as imagens e os significados das Cartas, os lances, o jogo, suas leituras e interpretações. Neste item, apresento os docentes, os atores e autores dos relatos de vida, a partir da voz pronunciada, e articulada à elaboração do pesquisador no que tange às temáticas do ingresso na docência, dos processos de identificação, das éticas que sustentam o fazer e o conceber da docência, das desestabilizações do ser docente, da a-firma-ção da docência, dos processos de mobilização, da negação da docência, entre outros. É neste item também que faço uma leitura dos rituais do estar-junto na escola e reflito sobre a formação dos docentes da Educação Profissional.

Como fechamento de escrita, de um lado, faço algumas reflexões (in)conclusivas e, de outro, convido o leitor a freqüentar as "dobras" e os "interstícios" da dissertação, ou seja, um outro entre-lugar intitulado "Os Devaneios no Mundo da Memória do Tudo", uma espécie de devaneio literário situado na dobradura da Bibliografia.

É importante considerar os limites do olhar e da escuta, do tempo e do lugar de percepção e interpretação por parte do pesquisador do societal. A posição de onde olhamos e escutamos tem implicações na maneira como percebemos e interpretamos os fenômenos que nos cercam. Isso - um escuta-dor e um olha-dor do outro e do mundo - é preciso ter claro! Além disso, é necessário ter presente que: quem narra, quem conta uma história, também fala de um lugar, fala de uma posição ímpar, e que, por isso mesmo, afeta a forma como se vê, se percebe e se conta. Cabe ao pesquisador a postura de vigilância do olhar daquilo que se mostra e da escuta que é possível captar.

Nesse sentido, embora reconheça os limites das condições interpretativas e perceptivas que estamos envoltos na interação e na dinâmica própria da socialidade, destaco a potencialidade de uma investigação sustentada na perspectiva da razão aberta e sensível (MAFFESOLI, 1998). No entanto, é preciso dizer que, em virtude da abertura e das múltiplas possibilidades interpretativas, o trabalho analítico requer do pesquisador sucessivas e permanentes escolhas e decisões dos caminhos da pesquisa, ou seja, no momento da escolha por um caminho necessariamente abdica-se de outros possíveis. Esta é uma tensão permanente que acompanha o pesquisador.

"Como o mar pleno da interpretação está aberto, a todo momento é necessário decidir qual o rumo a tomar. Essa é uma angústia típica dos artistas que, por exemplo, ao eleger uma cor, uma nota musical, uma rima têm que abdicar de todas as outras possibilidades." (HARA, 2004, p. 232-3)

E cá estou, fazendo algumas escolhas no oceano do conhecimento, decidindo rumos de pensamento e, por isso mesmo, abdicando de tantas outras possibilidades de dizer as coisas da vida, do mundo e da educação.

[1] A Escola Técnica José César de Mesquita, localizada na Zona Norte de Porto Alegre, RS, mantém quatro cursos técnicos na área da indústria e informática. Tem como Mantenedora o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metal-Mecânica e de Material Elétrico da Grande Porto Alegre.
[2] As disposições metodológicas que aqui nos referimos dizem respeito a perspectiva de compreender que as dimensões sensíveis, intuitivas, emocionais e afetuais, "coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, (...) mas vão tornar-se alavancas metodológicas que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais" (MAFFESOLI, 1998, p.53)
[3] Empatia: 'tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa'. 'Estado de espírito no qual uma pessoa se identifica com outra, supondo sentir o que ela está sentindo'. (Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2003).
[4] Para esta compreensão da intuição enquanto disposição metodológica ver Maffesoli (1998, p.130-146), na medida em que ela é um ato de conhecimento, "um vetor importante de conhecimento do vitalismo em ação nas nossas sociedades". Trata-se de uma sensibilidade intelectual no qual o pesquisador se apresenta como um "farejador social" a captar e perceber aquilo que está nascendo sob os nossos olhos e ouvidos.
[5] Epifania: 'aparição ou manifestação divina' (Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2003).
[6] Trata-se de uma perspectiva de conhecimento onde sujeito e objeto fundem-se, mesclam-se, acariciam-se mutuamente, ou como diz Maffesoli (1998): "O observador social [é] parte integrante do objeto estudado, desenvolve um saber puro, um conhecimento erótico. Coisas que induzem a uma sociologia acariciante." (p.47)
[7] No que tange a esta nova qualidade do olhar, o autor se refere de forma ilustrativa ao olhar intenso da criança que “vê tudo como novidade; ela está sempre inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor.”(BAUDELAIRE, 1988, p.168)
[8] Etimologicamente, a palavra respeito vem do latim respectare (CUNHA, 2003, p.679), isto é, re-espectar, re-ver, re-olhar.
[9] Ventura: 'fado, destino; sorte, fortuna'. (Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2003).
[10] Cabe ressaltar que a literatura fantástica de Italo Calvino tem lugar central neste trabalho, já que concebo suas obras literárias como referência para o tratamento e para a perspectiva metodológica-interpretativa das narrativas de vida da docência, na dimensão de aproximar a pesquisa e a educação da literatura e da arte.
[11] Parafraseando o título de uma das obras-referência deste estudo: "O castelo dos destinos cruzados" (CALVINO, 1991). Nesta obra, Calvino embaralha e entrelaça as narrativas e destinos de personagens, revelando-nos as múltiplas e inesgotáveis possibilidades, sentidos, leituras e interpretações de cada história. É a partir das cartas de Tarô colocadas umas ao lado das outras e jogadas sobre a mesa de um castelo que as personagens contam suas histórias e narram suas aventuras e desventuras. Cabe destacar que, nesta pesquisa, não faço uso e referência apenas do título da obra de Calvino, mas sobretudo enquanto um potente operador analítico-metodológico dos relatos de vida da docência no sentido, inclusive, da metáfora do uso de Cartas para dispor e visibilizar, embaralhar e entrelaçar as múltiplas histórias e trajetórias da docência na educação profissional.