“Me afirmo docente na medida em que não só estou na docência,
mas vivo, compartilho,(e)s(t)ou e me faço docente” (ARENHALDT, 2004, p.40)
Ser docente é afirmar-se docente. É dizer a si mesmo, afirmativamente, 'sou docente'. É ser inteiro, é ser decente[1]. Docente é aquele que se sente decente quando se afirma docente. Ser docente é um modo de ser na totalidade, na integralidade, é ser 'todo'.
E como se constitui esse ser docente? Ele se constitui na convivência e se afirma docente porque gosta de ser educador, e esse gostar tem a ver com o prazer, com o sabor e a realização que essa atividade agrega. Não é somente na razão que podemos entender como se constitui a ética docente e da compreensão do que é, e como se aprende a ser professor.
“Porque eu gostei de dar aula. Gostei de ser professor, gostei de dar aula, gostei de tá lá explicando o pouco que eu sei. (...) E eu sempre vou aprendendo...sempre me falaram isso, tu vai aprender quando tu tiver que ensinar. Aprendi de uma forma diferente, que até acho que é verdade mesmo.” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 291-299)
Entendo também que a afirmação de ser docente está indissociável daquilo que é dito, anunciado socialmente sobre o trabalho docente. Está indissociável daquilo que os segmentos sociais concebem, sistematizam e anunciam sobre o que representa tal atividade. A forma como dizem e como cuidam deste docente está diretamente ligado ao que representa a educação como um todo.
Esse ser docente se constitui e se afirma nos diferentes espaços de reflexão sobre a sua prática pedagógica, social, institucional, política, entre outras dimensões. Constitui-se refletindo sobre o seu próprio fazer. Nesta dimensão a escola é um lócus privilegiado das manifestações dos processos de afirmação da docência na pessoa.
É na escola que grande parte dos docentes, mediados pelo prazer de ensinar, se afirmam professores. Assim revela o Professor Sidney em seu relato. Se num determinado momento de sua existência não se considerava um professor, já em outro período se questiona: acho que eu sou professor. No entanto, foi o ingresso na sala de aula, a auto-avaliação do seu trabalho e vendo o que deu certo que, lhe faz então, afirmar: sou professor.
“(...) aqui eu me realizo, aqui eu consigo planejar. Aqui eu consigo dar um esforço, passar horas e horas e horas, e fim de semana planejando tudo e aplicando no outro dia e me decepcionando porque não atingiu os objetivos. Tendo que planejar novamente até um dia, a gente dava certo...quando menos se espera alguém dizia uma coisa: ah, mas tu...eu sei quem foi teu aluno por isso, por isso e por isso Opa, acho que eu sou professor. Foi quando eu entrei pra sala de aula mesmo, porque na verdade eu não me considerava um professor e vi que deu certo, vamos dizer assim. Eu fiz a auto-avaliação, isso aí deu certo. Tô me dedicando. Sou professor” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 266-273)
A experiência de viver a sala de aula como professor, a prática pedagógica propriamente dita, se constitui enquanto fluxos de relações e significados que dão o tom, a tonalidade e o balanço dos processos de afirmação da docência na pessoa. Os relatos abaixo ilustram a forma pela qual os docentes constituem e estabelecem os significados dos mecanismos e estratégias para se firmar, fixar e grudar na docência.
Se ainda haviam dúvidas sobre ser professor, é logo após a experiência da primeira aula que o Professor Sidney se afirma docente pois foi ali que eu não tive dúvidas que eu podia dar aula.
“(...) foi a experiência da minha primeira aula. Aí eu vi que não era difícil, que eu conseguia, e dei as aulas. E essas foram minhas primeiras aulas. (...) Foi importante, foi ali que... ali eu não tive dúvidas que eu podia dar aula.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 366-371)
Afirmando-se docente aos poucos, o Professor José Flori relata:
“(...) aos poucos eu fui adquirindo experiência em cima do próprio trabalho e fui também, aquele diálogo, aquelas coisas assim a gente foi se inteirando mais, porque uma coisa que eu considero que o professor em sala de aula ele tem que estar mais perto possível do seu aluno. Se tu tá próximo dele, tu consegue inclusive até que eles desenvolvam melhor” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 756-760)
“(...) o que que mudou né... mudou... na verdade hoje a minha profissão que eu considero é professor. Então, talvez a mudança, teve uma mudança de profissão né! Eu passei de uma profissão de muitos anos, eu trabalhei eu acho que uns 25 anos, né, 25 anos na prancheta (...) como desenhista dentro da empresa e tal, e depois nos últimos 8 anos trabalhando como educador e tal” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1267-1271).
Num em-se-fazendo professor, ambos, o Professor José Flori e o Professor Sidney, foram se constituindo, foram se afirmando docentes. No caso deste último, apesar de ter a lógica de pensamento de um engenheiro e de, num determinado momento, querer se considerar engenheiro e professor, conclui por afirmar: Mas eu sou na verdade professor.
“Eu queria me considerar engenheiro e professor, mas eu na verdade fiquei professor.... professor de ensino técnico e até de áreas de engenharia, algumas... eu até me considero engenheiro também, eu tenho a lógica de engenheiro e tudo (...) Mas eu sou na verdade professor.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 440-446)
O processo de afirmação docente, para o Professor Sandro, é gestado ainda quando aluno. Ser professor é pensamento presente na vida de estudante de engenharia, especialmente nos momentos em que explicava para os colegas os conhecimentos da área da Engenharia Elétrica. O pensar em ser é o primeiro passo para ser, que vai sendo gerido, trabalhado e recheado de gosto pela possibilidade de ser professor. Diz o Professor Sandro: já pensava em ser professor realmente, ai eu comecei a ir pensando nisso né, é eu acho que, e eu gostava, eu comecei a gostar disso.
“(...) foram vários que disseram isso, não, então isso não é um elogio duma pessoa que ta querendo agradar porque tu ajudou, mas é um, pode se dizer, uma constatação, há então realmente, realmente devo ter isso, devo ter essa flexibilidade para explicar.... e eu comecei a pensar nisso até que poucos dias veio me visitar um primo que é lá de Bento Gonçalves e era meu colega na PUC, só que ele fazia Engenharia Mecânica, (...) E ele disse assim: Quando a gente estudava tu já pensava em ser professor! E eu disse assim: É, é verdade, já pensava. (...) eu já pensava em ser professor realmente, eu comecei, ai eu comecei a ir pensando nisso né, é eu acho que, e eu gostava, eu comecei a gostar disso...” (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 479-488)
O Professor José Flori, quando perguntado sobre o momento em que se percebe professor e sobre o significado de ter a inscrição de "Professor" na carteira de trabalho, responde:
“(...) essa ficha ela custou a me cair, eu não sei te precisar, mas ela levou ... bom tempo e até hoje eu acho até pela própria não-formação que eu tenho, que ela não caiu ainda, ela ainda falta ainda, pra mim ela falta ainda né... eu acho que às vezes eu estou professor, realmente às vezes eu estou estou professor, que ela não... eu sou, eu me considero um eterno aluno, eu acho que o ser humano tem que se considerar assim um eterno aluno, na vida de uma forma ou de outra tu é um eterno aprendiz, né. E, dentro da escola, a cada dia, tu aprende alguma coisa nova com os teus alunos. Quem disser o contrário está faltando com a verdade! A sala de aula, ela é um ambiente de aprendizado para ambos, para tu adquirir experiência, tu troca experiência com os alunos. Na sala de aula as vezes os alunos sabem até mais do que tu” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 779-788)
É assim que se percebe: está professor, ainda não é; está professor em processo, pois se considera um eterno aluno. Um eterno aprendiz que, estando professor, vai sendo, ficando e permanecendo na docência.
Parafraseando Morin (2001, p.16), quando este fala em amor, entendo que a história e o relato de cada docente "é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com fios extremamente diversos, de origens diferentes. Por trás de um único [eu sou professor] há uma multiplicidade de componentes, e é justamente a associação destes componentes inteiramente diversos que faz a coerência do" afirmar-se docente. A coerência do afirmar-se.
Para o Professor Ronaldo, o fato de voltar a dar aula, e o prazer que isso gera, é mobilizador de um processo de afirmação, ou seja, dar aula é a chance e até pra também me afirmar um pouco.
“(...) foi interessante eu voltar a dar aula porque eu gosto de fazer isso, foi bem uma hora que eu tava procurando isso e acabou caindo pra acontecer, nada podia dar contra pra eu perder a chance e até pra também me afirmar um pouco” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 486-488)
Afirmar-se docente, mais do que uma condição, é também um processo no qual cada um dos professores se insere, se assume de forma singular, seja como engenheiro, técnico, trabalhador, educador, nas relações com o outro, consigo mesmo, com o mundo e especialmente com a docência.
[1] Apoiado na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos (1997, p.53-54) a noção de decente ganha sentido na idéia de um conhecimento prudente para uma vida decente, na dimensão de que é "necessária uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos [... onde a] ciência do paradigma emergente é mais contemplativa do que activa."