Neste estudo conclamei por um pensamento, uma reflexão e uma ciência recheada de vida, para que, no próprio processo de metamorfose da existência, pudesse me aventurar a escrever sonhando e me lançar no abismo da criação. Um pensamento, uma reflexão e uma ciência que, de certa forma, provoque e produza um conhecimento sobre si, sobre nosso tempo e que, sobremaneira, problematize os limites da própria identidade e do tempo em que vivemos. E, assim, empreender efetivamente o que Morin nos desafia: "reformar nosso pensamento".
Neste percurso da pesquisa, dirigi o olhar e a reflexão para a natureza e a complexidade da formação inicial e continuada, dos saberes, das ações, fazeres e reflexões dos docentes. Dirigi olhar à docência que é construída na socialidade e que tem origem num processo cultural, ou seja, na epifanização dos saberes a partir de suas biografias, histórias, subjetividades e no ressentir de suas memórias.
Procurei conhecer melhor o docente da Educação Profissional. Dirigi o olhar e a reflexão para o estatuto e a característica da formação inicial e continuada no âmbito do desenvolvimento profissional e pessoal do docente. Procurei estabelecer os nexos possíveis, a partir da voz e do testemunho da docência, entre sua trajetória de vida, ingresso, permanência na docência, identificações e formação.
Percebi a potência irradiante que é o trabalho com relatos de vida, na dimensão que os docentes não são objetos de estudo ou meros sujeitos coadjuvantes da pesquisa[1]. Eles se incorporam, são os atores e autores da pesquisa. Eles, os docentes e sua vida, são a própria pesquisa. Percebi que a pesquisa não se esgota em si mesma, ela estende suas fronteiras para além de si, como processo formativo e reflexivo, já que "a apropriação que cada pessoa faz do seu patrimônio existencial, através de uma dinâmica da compreensão retrospectiva, é fator de formação" (OLIVEIRA, 1998, p.9). O relato de si é reflexão de si, é formação. Trata-se, como destaca a autora, da "instalação de uma outra cultura na formação de professores [: a] cultura do professor reflexivo" (p.10).
Dar voz à docência é, de certa forma, subverter uma lógica de pesquisa e formação que muito diz e pouco escuta, para uma lógica que mais escuta, contempla, compreende e reflete. Dar voz à docência é possibilitar e "contribuir para a construção da memória desta categoria tão falada e pouco falante" (OLIVEIRA, 2002, p.107). Dar voz à docência é viabilizar um processo de formação, reflexão e afirmação de si como professor.
"Essa construção de si próprio é um processo de formação, ou melhor, de autoformação. A instalação de dispositivos que possibilitam a rememorização e a reflexão sobre os acontecimentos que produziram 'marcas', que inscrevem registros acaba dando passagem a outras criações. O sujeito de posse do seu 'material' existencial tem a possibilidade de ler a sua própria situação e aquilo que se passa em torno dele" (OLIVEIRA, 1998, p.10)
Diria, também, de um processo de auto-conhecimento, de (re) conhecimento de si como professor, de (re) conhecimento da potência de sua vida (MACHADO, 2004).
Neste estudo, enquanto escuta-dor, aprendi com os professores. Compreendi melhor suas práticas, lidas e vidas. Compreendi mais a vida da escola, as vidas que ali fluem e, sobretudo, me (re) conheci melhor como pedagogo e pesquisador em formação. Ao escutar os relatos de vida da docência "senti como se tivesse comido algo tão nutritivo que levaria a vida inteira para digeri-lo" (SOMÉ, 2003, p.77). Dispor-se a praticar a escuta que de fato escuta o outro é, como bem ilustra Morin (2000, p.19), um processo de "descoberta de nós mesmos em personagens diferentes de nós". Nutri pela vida um sabor e um gosto especial e descobri, também, que não se pode enclausurar a vida na pesquisa. Descobri a beleza de se nutrir a pesquisa com vida, mas que nem sempre a pesquisa é capaz de captar o fluxo da vida.
Percebi e me perguntei no percurso da pesquisa e da escuta da docência: quantos outros Ronaldos e Ricardos estão hoje presentes no cotidiano das escolas? Quantos outros Sidneys e Sandros, que têm jeitos singulares de se contar o ser professor, estão presentes e refletem como espelho outros docentes nas escolas pelo Brasil? Quantos outros Josés e Ademares existem nas escolas? Sim, os docentes entrevistados nesta pesquisa são singulares, suas histórias, seus relatos e suas trajetórias são peculiares, mas também refletem um jeito de ser de todas as docências. Estas docências se multiplicam, estão no plural.
Dias antes de preparar a (in)conclusão deste trabalho, me perguntaram se esta dissertação era mesmo de educação. Embora "quase" convicto que sim, pensei - e isso é uma coisa que se faz muito no mestrado -, e até duvidei, mas esbocei uma resposta. É uma dissertação também de educação, mas não só, já que a ciência da educação é o campo do transdisciplinar.
Nesta dissertação plantei.
Cultivei nos campos da educação,
Numa vasta área sem fronteiras, sem limites.
Nesta dissertação cultivei.
Preparei a terra com muita(s) história(s),
Reguei as sementes com sociologia,
Adubei as mudas com filosofia e literatura.
Nesta dissertação plantei.
Cuidei da terra, das sementes e das mudas com poesia e arte.
Se germinar, não posso garantir.
Se o senhor tempo ajudar,
E com chuva, sol e vento contar.
Se cada semente-palavra desenvolver,
E muda-metáfora crescer.
Espero poder, então, colher.
E sobre a mesa dispor e compartilhar,
Não só o sabor,
Mas, a vida que dali brotou.
Para além da educação,
Da sociologia, história, filosofia, literatura, poesia e da arte,
Foi sobre a vida que se tentou contemplar,
E, assim, degustar, não sozinho, mas junto-com.
Concluir a escrita desta dissertação, e mais, dizer as últimas palavras que insistem num ponto final, refletindo o percurso do Curso de Mestrado, provoca, no corpo, no espírito, na alma ou na mente, um sentimento ambíguo. De dor e saudade de uma separação anunciada; de prazer e sabor por até aqui caminhar. De, mesmo que não tendo chegado em conclusões conclusivas, sentir e perceber que - a cada palavra escrita, vírgula colocada, sentido estabelecido, conexão realizada, metáfora vivida, frase saboreada, escuta sentida - o que fica mesmo é a aventura de arriscar-se e gestar-se no abismo da pesquisa, a coragem e a audácia de escrever sonhando e pensar colorindo a vida. O que fica é algo que não se pega, que não se captura, algo que não é (um fim), algo que é a própria busca, uma busca de um em-se-fazendo no próprio caminho da busca, um buscar infindável porque é sempre um novo começo. Como um renascer que prepara a vida para novas buscas. Se num toque de mágica todas as palavras até aqui escritas se apagassem e se esvaíssem - como uma broa se esvaindo na boca - podem ter certeza, pelo menos de uma coisa: recomeçaria e reescreveria tudo de novo, imediatamente. Só que, aí então, mais uma certeza se confirmaria: outra dissertação seria, pois outros e novos sonhos, outras e novas constelações me mobilizariam, outros mundos veria e sentiria, outros pensamentos e idéias teria, outro Rafael, sem dúvida, eu seria.
[1] "Quando nos propomos a ouvir o que os professores têm a dizer a respeito de suas trajetórias profissionais, estabelecemos uma relação que ultrapassa a dicotomia pesquisado-pesquisador ou sujeito-objeto. O professor (...) ao selecionar as informações fornecidas, dá o tom da pesquisa e se transforma, ele mesmo, em pesquisador, sujeito ator" (HORN, 2000, p. 29)