(1) Identidades fluídas: um jeito inacabado de ser

No espírito deste estudo, a identidade é compreendida em sua dimensão fluída, na perspectiva de Maffesoli no que tange ao deslizamento de uma lógica da identidade a um processo de identificação que, por sua vez, tem um caráter escorregadio, nebuloso, instável e transitório. A partir desse autor, reitero esse jeito inacabado de ser, de ser pessoa em processo, que muda de forma e é complexo; reitero que essa entidade 'eu' é uma frágil construção, com contornos e traços provisórios.

Longe das ilusões e dos enclausuramentos identitários (MAFFESOLI, 1995, p. 77) elaborados no silêncio dos gabinetes de pesquisa e combatendo os bolores das velhas idéias (HARA, 2004, p.184), saboreio a perspectiva de compreender a pessoa enquanto 'eu' em permanente invenção de si, em contínuas metamorfoses, enquanto fluxo capaz de transfigurar a si mesmo em uma multiplicidade. Ou como destaca Hara (2004) sobre a vida errante de Baudelaire:

"Baudelaire era incapaz de ser o narrador de um eu verdadeiro, porque tudo o que sabia era inventar-se permanentemente".(HARA, 2004, p.33-34)

No testemunho da docência, a fluidez e a liquidez são visibilizadas no relato e na constituição de si. O contar-se, o falar de si, a voz da docência é constituída em processo; o 'eu' docente se constitui no próprio processo de narrar-se. Ao contar-se, o narrador se transforma, se metamorfoseia em múltiplos. Traduzimos isso como um pertencer múltiplo (MAFFESOLI, 1996, p. 315), nas múltiplas identificações que a pessoa está envolta e que brotam de si.

Tu não é a mesma pessoa que tava ontem, diz o Professor José Flori. São as múltiplas metamorfoses - próprias de uma atitude camaleão[1] - que constituem um mesmo indivíduo. Cada um, ao longo de sua existência, muda diversas vezes. São mudanças que podem ser traduzidas por variações, modificações, já que somos fluxo em permanente e constante recriação de nós mesmos, revelando o caráter movediço da individualidade humana (MAFFESOLI, 1996).

“Enfim, eu acredito que cada dia na profissão de educador é um desafio. Que tu não é a mesma pessoa que tava ontem e os alunos também não são! E eles tem... tem dia que tu tá mais aberto, outro dia tá menos aberto como qualquer ser humano pra aprender!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1212-1214)

É o educador que se concebe no caminhar, dando seus passos em territórios provisórios, longe de perspectivas únicas e fechadas. É o educador que compreende que, se ele, enquanto ser humano, não é o mesmo de ontem, também os alunos não o são. É o educador que se compreende no processo e que, também, se coloca aberto para ele mesmo ser um aprendente, um educador sabedor do incacabamento do ser humano (FREIRE, 1996).

De outro lado, num período determinado da existência, o mesmo indivíduo não é homogêneo a si próprio. Ele representará diferentes papéis ou uma multiplicidade de personagens. Somos fusão, somos vários diz Maffesoli (1998). Sou uma mescla, sou uma mistura diz o Professor Ricardo, referido-se ao fato de representar os papéis de docente e engenheiro. Fiz uma mescla dos dois: ser professor e ser engenheiro.

“Nunca tive esta atribuição. Não gosto nem que me chamem de senhor: me chamem de Ricardo. Na aula até, ah senhor, ah professor, isso é normal, mas eu sempre fiz uma mescla dos dois, ser professor e ser engenheiro. Nunca me intitulei muito...ah, sou isso. (...) Até misturei os dois assim, até pra conciliar né, muita coisa levo da profissão, muita coisa levo da docência.” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 219-223)

Não carrega um título fixo que o identifica como singular, ele é uma mistura, é múltiplo, vários. É uma identidade fluída, mesclada, já que incorpora elementos diversos. Leva em si, enquanto pessoa, muitas coisas da profissão engenheiro, bem como da docência. Incorpora e concilia na mesma pessoa "múltiplas máscaras" (MAFFESOLI, 1996).

"eu sou um duplo, eu também tenho um 'segundo' rosto, além do primeiro, E talvez também um terceiro" (NIETZSCHE, 2003, p.26-7)

Para o Professor Sidney, ser professor não é algo dado como estanque, cristalizado, definido a priori ou determinado por um decreto. Ser professor é um processo, já que "antes de ser um professor, fui me fazendo professor". Se no início da sua vida profissional não se imaginava, não se considerava professor, foi no percurso de sua formação para o Ensino Técnico que se percebeu e constituiu as condições de possibilidade para se fazer professor: aí eu entendi que eu seria um professor.

“(...) quando eu comecei eu não imaginava que seria professor, não me imaginava sendo professor, não me considerava professor, se eu fosse um bom técnico já seria bom. E como eu entrei no ensino técnico e formação para o ensino técnico, na didática também, aí eu entendi que eu seria um professor, com formação técnica e seria um professor. Primeiro, antes de ser um professor, fui me fazendo professor, (...) chegou o momento assim que eu tive que decidir: ou ficava mais para o magistério, me dedicava mais a ser um professor, ou permaneceria mais na indústria e seria mais um trabalhador, um técnico, (...) foi quando eu entrei pra sala de aula, vi que ali a gente podia deslanchar, que ali o limite era mais a gente mesmo, e não... numa indústria, numa empresa, a gente às vezes fica muito vinculado aos objetivos econômicos, comerciais” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 254-260)

Assim como o Professor Ricardo, o Professor Sidney, convive, concilia e incorpora outras faces, usa múltiplas máscaras, representando personagens no plural. Com a ambigüidade de uma formação para a área técnica e para o magistério, opta por dedicar-se mais em ser um professor, pois "quando entrei pra sala de aula, vi que ali a gente podia deslanchar". É ali, na escola e na docência, que o professor entende que pode ser mais, que pode se aventurar para além das fronteiras de si mesmo.

[1] A atitude camaleão, segundo Maffesoli (1995, p.45), pode "ser explicada pela saturação do princípio de identidade e pela emergência de indentificações sucessivas."