(4) Identificações, modelos e "matriciamentos"[1] de um jeito de ser docente

Um aspecto fundamental, presente em todos os relatos da docência, diz respeito aos processos pelos quais os docentes se identificam e se apoiam para dar aula, trazendo sempre exemplos de professores com os quais se identificavam quando alunos. A presença e a lembrança de experiências boas ou ruins tornam-se significativas no que tange à forma, ao jeito de ser docente na escola, ou seja, os modelos e os "matriciamentos", enquanto eram alunos, são fundamentais para construir uma imagem de ser professor. São os exemplos dos seus professores que desencadeiam um cenário de significações do que é ser um docente.

"(...) as imagens dos(as) professores(as) serviram de referência para balizar a sua prática pedagógica na atualidade: fosse com relação ao modelo, muitas vezes idealizado, de professor(a), fosse por um 'antimodelo', não menos modelo do que o primeiro, de um(a) professor(a) cuja prática não serviria de exemplo" (PINTO, 2000, p.229)

Corroborando com esta perspectiva, Bueno (2002), referindo-se a Gary Knowles (1992), postula que a forma como os docentes pensam sobre o ensino é, em parte, definido por experiências prévias, ou seja, os estudos de biografias de professores mostram que os processos de identificação docente se configuram fundamentalmente a partir das experiências anteriores de vida relacionadas à educação e ao ensino, e não nos programas de formação de educadores.

Nesta mesma perspectiva, ou seja, pensando neste trânsito entre experiência escolar, ingresso e identificação pela docência, Nóvoa (1991, p.91) ressalta:

"No processo de sua entrada na profissão, os docentes [...] utilizam freqüentemente referências adquiridas no momento em que eram alunos: num certo sentido, pode-se dizer que o crucial da profissionalização do professor não ocorre no treinamento formal mas em serviço“

A articulação entre as dimensões da formação inicial e continuada, as experiências de vida, as referências, modelos e imagens da docência, bem como os elementos que caracterizam seu ingresso e sua permanência na atividade são aspectos fundamentais para a compreensão dos processos pelos quais a docência se diz, se conta e se constitui.

Nesse sentido, dando voz à docência, deixando-a falar por si mesmo, reforço a tese de que o ser professor, para os professores entrevistados, tem seus processos de identificações sustentados e ancorados nos modelos, "matrizes", registros, referências e experiências, sejam positivas ou negativas, dos seus professores.

a) Professor José Flori:

"eu lembrei de um cara que eu sou fã. Eu achei muito legal aquilo [fechar a porta e fazer uma reunião com os alunos] e eu peguei e fiz aquilo também"

“Aí um dia eu fechei a porta, mas neste momento eu lembrei de um cara que eu sou fã dele que é o Sérgio, que era professor de Produção Mecânica na escola. O Sérgio um dia achou que a turma não tava muito... pegando legal e ele fechou a porta, sentou numa classe e resolveu fazer uma reunião com os alunos. Eu achei muito legal aquilo e eu peguei e fiz aquilo também (risos), peguei o exemplo do cara. Eu peguei, fechei a porta e comecei, peguei uma cadeira sentei assim e fui conversar. Aliás, até hoje eu faço isso! Se eu acho que a coisa não tá muito boa, eu sento com a turma e vamos conversar” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 706-713).

"eu não recomendo a sua didática"

“(...) em faculdade eu já disse para professores meus que eu não seguiria a didática dele, aliás eu disse bem assim: eu não recomendo a sua didática. Que o aluno não pode ser um mero número ou alguém que tá pagando a mensalidade (...), tem que tá lá para ensinar.“(José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 813-817).

"procurei (...) observar bem como o professor dava aula"

“(...) é claro que quando eu fui fazer o curso de AutoCAD eu procurei anotar tudo, eu fiz todas as anotações possíveis e observar bem como o professor dava aula!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 961-963)

"observar pessoas que eu considero um exemplo: 'a senhora é uma pessoa que me inspirou' ... me inspirou a maneira dela dar aula, no dia que eu der aula"

“(...) uma coisa eu aprendi também né, que as vezes as pessoas são na teoria uma coisa e na prática fazem outra. E uma coisa que eu sempre procurei observar pra dominar, no sentido assim de dar aula, de transmitir assim essas coisas foi observar pessoas que eu considero um exemplo. E uma professora que eu tive na faculdade quando eu fiz engenharia na UNISINOS e eu tive aula com ela na FAPA, mais tarde, e tive oportunidade de dizer isso pra ela: a senhora é uma pessoa que me inspirou... fui ter aula no sábado com a mulher aqui - na FAPA - me inspirou a maneira dela dar aula, no dia que eu der aula... lá em 1987 e eu fui dar aula quase 10 anos depois, já pensava isso há muito tempo né! Porque aquela didática dela era importante, era uma coisa bem explicada, mostrava da onde é que saiu, essas coisas assim.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 987-996)


b) Professor Ronaldo:

"eu ia na aula pra ver como é que o professor dava aula, pra ver como é que ele ia ensinar aquilo"

“(...) lembrando, aí que tá... como eu tinha mais amigos professores do que os alunos e colegas eu prestava muita atenção nas aulas. Eu não estudava, eu nunca estudei! Então eu lembrava das aulas que eu tive no curso técnico, nas aulas que eu tive na faculdade e o que que e como é que eu aprendi aquilo, como é que os professores passavam, mesmo que eu já soubesse, eu ia na aula pra ver como é que o professor dava aula, pra ver como é que ele ia ensinar aquilo, e como é que ele tinha saco pra fazer aquilo todo o semestre (risos).“ (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 509-515)

"eu ia nas aulas pra ver como o cara dava a sua aula"

"Puxa, como é que o pessoal consegue fazer isso sempre? E aí eu ia, quando eu tava estudando, normalmente eu ia em todas as aulas pra aprender... e quando eu tava fazendo faculdade eu ia nas aulas pra ver como o cara dava a sua aula. (...) Então, eu me baseava neste tipo de coisa, eu tinha a minha experiência de dar aula como instrutor em uma coisa mais prática e tinha o retorno de como é que os professores davam aula, pra tentar fazer um paralelo entre os dois e usar isso... Então, basicamente é isso eu me baseava nas experiências que eu tive. Dos meus professores, da minha experiência como auto-didata, de dizer ó: Vamos por aqui!" (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 518-526)

c) Professor Ricardo:

"muitas coisas eu copio. Me baseei nos dois, os extremos: [nos melhores e nos piores professores].Nunca quero ser como eles [os piores], se eu for como eles, eu saio da docência"

“(...) muitas coisas eu copio do Canalli, tipo, ele agradecia quando a gente ia tirar uma dúvida com ele: ô professor, eu que agradeço o senhor ter respondido... não, não, eu que te agradeço por ter vindo me procurar (risos). E outros professores que tu nem podia chegar e perguntar, chamava de cachorro pra baixo, que esses eram os mais comuns né...então me baseei nesses dois, os extremos. No melhor professor de Física que era o Canalli, realmente é uma pessoa assim...de repente ele tá sem tempo, ele ia arranjar tempo pra fazer as coisas pra gente. E os técnicos né, não lembro do nome de nenhum, lembro de alguns professores. Mas esses aí eu pensei, nunca quero ser como eles, se eu for como eles eu saio da docência. E eu nunca vou ser, graças a Deus! Até pela minha...pelos meus poucos anos aí eu vejo que não sou igual a eles, e eu acho que eles eram assim por não dominar o assunto, por medo, sei lá...eles tem medo de dizer...ah, não sei. Bah cansei de falar... às vezes tem uns troço que eu nunca fiz na vida, vamos olhar, amo ver o que que dá, cansei de falar isso pros aluno.” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 153-165)

d) Professor Sandro:

"Um modelo que devia ser seguido. Me espelhei, quando vim a ser professor.

“(...) um modelo que devia ser seguido sem dúvida, (...) se quisesse pegar aquilo lá, acrescentar coisas e melhorar, ótimo, mas se já fizesse daquela forma já tava muito bom, (...) me espelhei, quando vim a ser professor, me espelhei nisso” (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 550-554)

"se a aula era boa, (...) eu olhava para o professor e dizia: 'É uma boa fórmula, um bom método' "

“(...) comecei a pensar seriamente no assunto, em ser professor, (...) vou ser professor né. E outra coisa que eu pensava cada vez que eu ia para uma aula... se a aula era boa, se eu gostava da forma como usava, eu olhava para o professor e dizia assim: É uma boa fórmula, um bom método". (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 494-499)

"quando for trabalhar como professor (...) não vou poder seguir isso aqui né"

“(...) eu dizia, bom, quando for trabalhar como professor, não vou poder (...) não vou poder seguir isso aqui né, porque justamente eu que questiono tanto esse tipo de atitude não vou poder ter a mesma, então eu ia fazendo mais ou menos isso (...) comparando. Ah, esse método não tá bom, não gosto disso, essa aqui também não, esse é bom, esse á razoável, esse é excelente. (...) entende, então tinha professores assim, que chegavam e começavam a te explicar um conteúdo teórico e aí ele aparecia com um tubo de PVC e um fio enrolado no tubo de PVC e dizia: Ó isso que eu estou falando aqui é isso aqui” (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 517-527)

"tinha essa questão da empatia com a professora"

“(...) eu tinha essa questão da empatia com a professora, com o método dela, com a forma dela trabalhar, então para mim a álgebra foi algo assim, a professora tava passando” (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 166-168)

e) Professor Sidney:

"um professor (...) disse uma coisa que me chamou a atenção. (...) Aquilo me marcou (...) eu me identifiquei"

“E numa ocasião um professor, chamava-se Ítalo Goron, (...) ele disse uma coisa que me chamou a atenção. Ele disse assim...era depois da...final da década de 60, início de 70. Ele disse assim: Hoje a época é dos técnicos. (...) Aquilo me marcou (...), numa época que eu me identifiquei, (...) e aquilo gravou” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 15-22).

"eu já estava acostumado a ser influenciado por professor"

“Aquela frase foi que abriu todo caminho. E outro professor, chamava-se Valmir, que hoje ainda é diretor do SENAI, é do tempo mais antigo...disse... Vocês tão tirando o curso técnico, vocês podem ser professores no ensino técnico, basta que tirem o curso de didática para o ensino industrial, que é o chamado Esquema II. Bom, como eu já estava acostumado a ser influenciado por professor, mais uma vez fui.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 40-44)

"ele [o professor] bateu bem em cima de algumas coisa que eu também acreditava"

“E quando o professor me disse que era pelo lado técnico que se podia chegar, a profissão se podia chegar, ou era a vez dos técnicos, ele bateu bem em cima de algumas coisa que eu também acreditava. Ele só confirmou com a autoridade dele, com a liderança dele. Ele falou algo pra mim que já estava mais ou menos consolidado... que já era o que eu achava também” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 458-462)

.....

Foi como estudante que grande parte dos narradores acabou se fazendo professor. O modelo foi mais a escola que viveu do que um desejo explícito, ou de um projeto de vida que contemplasse a opção de ser professor, algo que foi se fazendo, em processo. Se, de um lado, para os professores-narradores a docência foi se fazendo na escola, na posição de professores, de outro lado, foi na sala de aula, como estudantes, interpretando fazeres e dizeres dos seus professores, que elaboraram as tramas e os sentidos do ser professor em si.
Trata-se dos atravessamentos, da presença marcante dos professores dos professores, no sentido daqueles implicarem sobremaneira no jeito destes serem professores hoje.

Modelos e espelhos. Processos de espelhamentos e identificações que refletem a própria imagem de um em-se-fazendo professor. Imagens em movimento. Espelho que reflete vidas. Que traça silhuetas e contorna jeitos múltiplos de ser docente. É isso que aqui se fez: visualizar as múltiplas identificações da docência. Não há uma única resposta para a pergunta: 'que professor sou eu, que professor és tu?'. É uma escola sustentada não só por paredes, classes, cadeiras e outros recursos didáticos, mas também por espelhos, que refletem as múltiplas faces e formas de se contar, se viver e aprender a ser professor.

São as múltiplas faces da docência refletidas no espelho do relato. Mais do que um espelho, o relato e a reflexão de si, possibilitada pelo evento da entrevista-diálogo e sua posterior leitura, permitiu aos docentes e ao pesquisador um tipo de reflexão sustentada nas experiências da própria vida. Trata-se, também, de um processo de autoformação propiciado pelo percurso da pesquisa[2]. É a docência refletindo sobre si mesma, tornando-se capaz de recriar a vida a partir de suas próprias experiências. Pensando a partir das suas experiências, a docência é convidada para a reflexão de si, é incitada a autocriar-se. Um processo em que a experiência de cada um é singular e única e, por isso, "capaz de lançar uma idéia ou um olhar completamente diferentes sobre as coisas da vida" (Hara, 2004, p.111)

Todo conhecimento é autobiográfico, já dizia Sousa Santos (1997). "O conhecimento necessita de autoconhecimento" destaca Morin (2000, p.18). Referimo-nos a perspectiva de um conhecimento ancorado no processo vital, um conhecimento que não deixa de provocar um autoconhecimento. "Conhece-te a ti mesmo" já indicou Sócrates. Em outras palavras, a vida está implicada no conhecimento: "Toda a grande filosofia é a autoconfissão de seu autor" diz Nietzsche (2003, p.12).

"De tudo aquilo que é escrito, me faz gosto de fato apenas aquilo que alguém escreve com sangue. Escreva com sangue e haverás de experimentar que sangue é espírito" (NIETZSCHE, 2003, p. 11)

Marcelo Backes, no prefácio de Ecce homo, revela que - assim como grande parte das obras de Nietzsche - o título desse livro é resultado de muitas mudanças, ou seja, antes de receber o título pelo qual foi conhecido, recebera o título provisório de O espelho (Der Spiegel). Nessa singular autobiografia intelectual, Nietzsche poetiza-se em obra, obra de si. Soma-se a isso, o instigante subtítulo: de como a gente se torna o que a gente é, exprimindo uma busca, uma busca de si mesmo. Trata-se de um buscar na própria vida a matéria-prima para a sua obra.

O tornar-se o que se é nitzschiano, é estar aberto ao vir a ser, assumindo e incorporando a responsabilidade por seus pensamentos, atitudes e por seu devir, como forma de afirmar a própria vida. Assim, o tornar-se o que se é "não pode ser entendido como uma busca de uma identidade estável, aquela que expressaria um 'autêntico eu' reprimido, encolhido nas profundezas do inconsciente" (HARA, 2004, p.107). Referência aqui à recusa do enclausuramento identitário, e à afirmação da possibilidade de reinvenção permanente da pessoa, recheado de incompletudes e de um perpétuo inacabamento.
Falo de uma busca, uma busca de ser aquilo que se é. Leminski (1991) em versos diz:

"isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além"


Quando se descobre algo, já se é outro. No relato e na narrativa de vida e da docência, percebe-se que, quando um professor descobre-se, narra-se, identifica-se ou afirma-se professor, ele já é outro. Falo de uma docência que procura viver intensamente a docência, incorporando-a na existência de todo o dia. A docência não se faz somente no fazer pedagógico, didático ou técnico, mas também na vida, que é criação, invenção, aventura, para muito além do espaço institucional e da rigidez de uma identidade imutável. Parafraseando Leminski, quando diz que "Para ser poeta é preciso ser mais do que poeta", digo que para ser docente é preciso ser mais do que docente, como que estendendo as fronteiras para além de si. Assim, quando o poeta diz que um bom poema leva anos, podemos pensar que ser docente também leva anos:

"cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto"

(LEMINSKI, 1991, p.9)

Os relatos manifestados nesta Carta dizem respeito às identificações. São os processos de identificações, as fixações, as teias de identific(x)ações, o que fixa, o que gruda, o que cola na es-cola e na docência. São estes os processos pelos quais se criam as condições de possibilidade para a permanência e o a-firmar-se na docência.

[1] Os "matriciamentos" ou "matrizes" são utilizados nestes trabalho conforme Peres (2002), na perspectiva de se refletir sobre a apropriação das imagens como 'matrizes' detonadoras de um inventário sobre o que é, neste caso, a docência, bem como dos atravessamentos e dos saberes que matriciou e constituiu a docência na pessoa. Ainda para ilustrar tal perspectiva, destaca-se "a importância de resgatar as imagens [da docência], re-apresentadas hoje em forma de narrativa, como períodos e conteúdos matriciadores e potencializadores da [...] profissão docente." (PERES, 2002, p. 157)
[2] Sobre esta perspectiva, de compreender as histórias dos professores como potencializadores de processos de formação e autoformação, ver os estudos de Oliveira (1998; 2002). Trata-se da "instalação de uma outra cultura na formação de professores. A cultura do professor reflexivo" (1998, p.10)