DA ESCOLA DOS DESTINOS CRUZADOS (2)

Jogando as Cartas[1] dos relatos de vida: uma teia de sur-presas

"(...) também é deste modo que o destino costuma comporta-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver, é tudo igual". (SARAMAGO, 1998, p. 24)

"Um de nós escolhe uma carta, tira-a do baralho, pôe-se a olhar para ela como se se olhasse num espelho" (CALVINO, 1991, 79)


"De posse daquela carta, o jovem, em todas as outras cartas que lhe vêm às mãos, parece reconhecer um sentido especial, e as vai pondo em fila sobre a mesa, como se seguisse um fio de uma para outra" (CALVINO, 1991, p.79)

"O homem que retoma o 'gosto renovado pela vida' vê as coisas, sente o mundo, como se tudo fosse novidade, com aquele encanto da "primeira vez". Surpresa, mistério, prazer nas coisas banais, os sentidos transfiguram o mundo das coisas e do pensamento, tal como a criança que transforma uma espiga de milho em boneca ou um velho pneu numa máquina onde gira o mundo". (HARA, 2004, p. 218)

Assim como Calvino (1991), convido-os a mergulhar na encruzilhada das possibilidades da narração e da existência.

Escutar a vida e ler os relatos da docência é como abrir uma caixa de surpresas. Eles dão o tom, mostram os "nós" de uma teia, configurando, confeccionando e tecendo fios, desenhos, traços e contornos inimagináveis e inusitados, que se mostravam até então invisíveis e inexistentes, agora manifestados nos relatos de vida. A própria pesquisa ganha novos contornos, novos espaços são visitados, pois somos levados e surpreendidos pela voz, pela música e pelo ritmo da docência.

Nesse sentido, e procurando ser coerente com a proposta da pesquisa, permito-me surpreender-me, deixando-me levar pela voz, pela música e pelo ritmo da docência; estabelecer relações e conexões com as marcas, vestígios, eventos, episódios, trajetórias e fluxos de vida dos docentes, com os desvios, durezas e belezas do viver, com as surpresas, os mo(vi)mentos de ressignificação e de turbulência da existência que afetam os rumos da docência:

"(...) a vida já não seria algo parecido com o desenrolar de um novelo, mas uma sucessão de improvisos e novas aprendizagens diante dos acasos e das circunstâncias. Sob o signo do precário e do provisório, uma vida peregrina se acentua." (HARA, 2004, p.43)

Ou como bem manifesta as palavras do Professor Ademar sobre o ato de lembrar dos rolos de sua vida, pois são muitos os rolos nessa vida e não apenas um novelo passível de ser desenrolado linearmente:

“Porque a gente... pra se lembrar das coisas né... Agora, realmente tem muita vida né. Eu tenho muita... muitos rolos nessa minha vida né” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 4-5).

O Jogo está iniciado. Mesa circular dis-posta. Baralho embaralhado. Histórias entrelaçadas. Relatos cruzados. A vida e a voz da docência em e-vidência. Então, viremos as Cartas, já que ali tem muita vida né!

[1] É Importante destacar que a analogia com o jogo de Cartas tem aqui um sentido didático e ilustrativo. Embora tão misterioso quanto a vida (e porque não dizer ao exercício interpretativo da Ciência) o jogo de Cartas não é visto aqui como um exercício de cartomancia, tão próprio das figuras enigmáticas, nem mesmo como um exercício de decifração através das Cartas, mas como um elemento de aproximação metafórica na perspectiva de "captar centelhas de compreensão" (NICHOLS, 1997, p.18) da vida e da existência destes docentes. As Cartas, aqui utilizadas, não têm naipes nem números, mas têm personagens e, por sua vez, epifanizam manifestações de vida. As Cartas aqui utilizadas não revelam ou exercitam futurologia mas traçam os múltiplos contornos e jornadas de vida da docência. Nesse sentido, o uso das Cartas neste trabalho se aproxima da perspectiva de Calvino (1991), onde, tal qual a narrativa e o jogo, também a existência mergulha na encruzilhada das possibilidades, produzindo especificidades que não se esgotam nos sentidos de cada história imediata. Em sua diversidade, elas correm ao encontro umas das outras, aproximando-se, sem se confundirem, na rede comum de um passado e presente entrelaçados, que as significa e constitui. Embora Calvino em seu livro utilize as cartas do Tarô, optei neste trabalho por criar, inspirado nas obras surrealistas de Salvador Dali, as cinco primeiras cartas que correspondem aos relatos de vida da docência e no que tange a outra leitura do ritual do estar-junto, utilizo quatro Cartas do Caminho Sagrado (SAMS, 2000).

Primeira Carta - Excl-ama-ções e sur-presas: o ingresso na docência

Segunda Carta - Marcas e vestígios: os primeiros dias de aula

Terceira Carta - Os processos e as teias de indenti-fic(x)ações: que professor sou eu?

Quarta Carta - Nega-ções e int-erro-gações: as turbulências e desestabilizações do ser docente

Quinta Carta - As a-firma-ções de ser docente: as sustentações éticas