(3) As sustentações éticas

"o laço social torna-se emocional.
Assim elabora-se um modo de ser (ethos) onde o que é
experimentado com outros será primordial.
É isso que designarei pela expressão:
'ética da estética'."
(MAFFESOLI, 1996, p. 12)

Nos relatos da docência, percebe-se que os processos de a-firma-ções estão recheados e inundados de emoções em suas lembranças. A-firmar-se é concebido aqui, também, como aquilo que gruda, que prende[1], que firma, que tece a forma de se dizer professor; aquilo que gruda no outro, agregação. É nessa perspectiva que compreendo os dizeres, ações e atitudes da docência, que se dão na relação com, junto-com, na convivência, no estar-junto. Neste estudo privilegio as dimensões éticas da docência, ou seja, as emoções que promovem e potencializam a agregação e a-firmam a docência na própria pessoa.

Segundo Maturana (2001, p.170), é preciso entender que o humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. No entanto, ele atribui à emoção figura fundante do agir humano: “todas as ações humanas (...) se fundam no emocional porque ocorrem no espaço de ações especificado por uma emoção”.

A constelação múltipla das emoções, que brotam do agir humano na convivência, são visualizadas e captadas nas posturas, gestos, atitudes, linguagens, olhares, dizeres uns com os outros. É com os outros que nos constituímos enquanto humanos. A constituição do nosso modo de agir e viver humano é tributária de uma emoção fundamental: o amor[2]. Somos seres de amor. Vivemos de amor, a biologia do amor (MATURANA, 1999). Vivemos com, em convivência. Nesta mesma perspectiva, Maffesoli (1997, p.245) destaca: "(...) só existo em relação ao outro, na relação com o outro, sob o olhar do outro".

Assim, a ética ganha centralidade na reflexão:

“A ética tem a ver com a preocupação pelas conseqüências das próprias ações sobre o outro. Por isso, para ter preocupações éticas, devo ser capaz de ver o outro como um legítimo outro em convivência comigo, quer dizer, o outro tem que aparecer diante de mim na biologia do amor. O amor é a emoção que funda a preocupação ética” (MATURANA, 2000, p.43)

Visualizando-se os dizeres, o agir e as posturas dos sujeitos em convivência, é possível de se pensar a dimensão ética enquanto fluxo de emoções que potencializam a agregação social dos humanos, como legítimos na relação uns com os outros. Na perspectiva de Maturana, são consideradas éticas as relações que promovem e dão sustentação à vida em suas mais diversas manifestações; são consideradas éticas as dimensões que amparam o ser e o viver na perspectiva do Cuidado com o outro, do que "liga" ao outro, do vínculo e do convívio amoroso das pessoas entre si, da co-responsabilidade da vida global. Ou seja, esse outro amoroso como preocupação fundante da ética. Logo, o agir emocional em seu efeito oposto pode promover a desagregação, gerando processos de destruição do con-viver e da manutenção do social.
Se a perspectiva de Maturana sobre a reflexão ética é, em certo aspecto, mais prescritiva e universal, se aproximando da dimensão moral, Maffesoli trata a questão de outra forma. Para ele, ética e moral estão em âmbitos diferenciados, dissocia-as[3]. Não há como negar que, sob vários aspectos, ambos, no que tange a questão ética, se aproximam na abordagem e na compreensão da manifestação do fenômeno emocional e afetivo como centrais no agir humano. Tanto Maturana, quanto Maffesoli entendem que é na convivência ou no estar-junto que se revelam e se manifestam as dimensões éticas, e que estas promovem e potencializam os laços e as ligações entre as pessoas, as agregações. No entanto, há uma sutil - mas significativa - diferença nas abordagens. Maffesoli, ao dissociar ética de moral enfatiza que aquela emerge do subterrâneo da vida de cada ser humano, que germina da subjetividade emocional e afetiva entre as pessoas.

"o gosto que são partilhados tornam-se cimento, são vetores de ética. Para ser mais preciso, denomino ética, uma moral 'sem obrigação nem sanção'; sem outra obrigação que a de unir-se, de ser membro do corpo coletivo, sem outra sanção que a de ser excluído, se cessa o interesse (inter-esse) que me liga ao grupo. Eis a ética da estética: o fato de experimentar junto algo é fator da socialização." (MAFFESOLI, 1996, p. 37-8)

A ética é, portanto, movida e mobilizada pelo ser e não pela prescrição de um código de ética e moral universal. Para ele, a moral é universal, a ética é tribal e particular. A ética está no plural, existem múltiplas éticas.

"(...) a moral é universal, aplicável em todos os lugares e em todos os tempos; a ética, ao contrário, é particular, às vezes momentânea, funda uma comunidade e elabora-se a partir de um território dado, seja ele real ou simbólico." (MAFFESOLI, 1996, p. 16)

É ético tudo - para além de bem e mal - que, de uma forma ou outra, fomenta, cria, desenvolve e promove a agregação, o encontro, o nexo, o permanecer, o ficar, o estar-junto, independentemente se são constituídas de emoções povoadas de amor ou ódio, cooperação ou vingança, solidariedade ou inveja. Se as emoções mobilizam o encontro, o estar-junto, a agregação, são éticas. É isso que o autor nos provoca a auscultar na dinâmica do societal: ver, para além dos moralismos intelectuais, o que liga, o que cria comunhão, o que é mobilizador do estar-junto; ver os fenômenos pelo que são e não pelo que queremos ver; ver as coisas como são e como se apresentam; ver - sem a ânsia de tudo julgar - e perceber, nos mínimos detalhes, os sentidos e as razões internas inundados pelos olhares, dizeres e posturas.

A ética é emocional, ligada por laços de afeto. A ética não é sustentada por uma razão racionalizante mas por uma razão sensível. Não nos agrupamos, necessariamente, porque fazemos parte de uma mesma escola. Agregamo-nos porque somos seres afetivos na convivência, na socialidade da escola. Nossa proxemia, nossa ligação é ética, mediada pelo emocional. Na convivência nos conectamos pelo emocional, uma ética afetiva que produz criação, que produz vida. Uma ética da estética[4].

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Captei no relato da docência múltiplas éticas, recheadas de emoções e afetividades, constituídas pelo outro e com o outro, pelo balanço e pelo ritmo do outro: o aluno, o colega, a escola. Tais éticas constituem práticas pedagógicas que podem ser referidas como constituidoras da sustentação de uma Pedagogia múltipla, que agrega e conjuga, a um só tempo: (a) amizade e partilha; (b) diálogo, escuta, confiança e compreensão; (c) autonomia; (d) interação, vínculo e empatia; (e) comprometimento e força coletiva; (f) abraço, Cuidado, gozo e afeto; (g) prazer, acolhimento e sabor; (h) respeito, reconhecimento e cumplicidade.

(a) Sobre a amizade e a partilha
Refiro-me a uma Pedagogia que tem como postura fundante o compartilhamento da vida no espaço da escola e da relação da docência com a discência. Uma postura que se sustenta na amizade entre os sujeitos que compartilham a vida na escola. Saber dividir, como expressa o Professor José Flori. Partilhar conhecimentos, experiências, partilhar a vida. A interação que se ampara num jeito de ser que privilegia o diálogo, o respeito pelo outro e a afirmação que diz: eu sou amigo deles [os alunos].

“(...) eu acredito que uma coisa que me ajuda muito é a amizade que eu logo faço com os alunos. Saber dividir com eles essas duas coisas. O que é sala de aula e o que que é fora da sala de aula. (...) às vezes tu chega na escola e tu não sabe quem tu vai cumprimentar primeiro... tem essa brincadeira, o time de futebol, então pego no pé deles, eles pegam no meu, tem o momento de descontração, tem o momento da sala de aula, tem o momento da exigência” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1052-1058)

”Como... pode ser o melhor professor do mundo e a aula ser uma porcaria também, depende do contexto. Minha interação é boa, porque na verdade eu sou amigo deles. Eu penso, paro, converso (...) tu tem que ser amigo deles...na verdade é meu jeito...ah, vou ser amigo deles, pra conquistar... não adianta, é meu jeito de ser, minha personalidade é assim. (...) na verdade eu sou amigo deles, eles me contam de tudo, tudo, problemas que tem em laboratório, bah, não gosto da fulana...então às vezes eu tenho que resolver problemas assim, pessoais das criaturas!” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 255-284)

(b) Sobre o diálogo, a escuta, a confiança e a compreensão
Outras pedagogias que se manifestam enquanto dimensão ética do trabalho docente são captadas nos relatos quando o ato de escutar, de ouvir abertamente, de parar para conversar com o outro, procurando entender este outro, se transfigura em ética da compreensão. Uma ética da compreensão que revela inclusive mudanças de atitudes do próprio professor: muda a maneira que eu tô dando aula, diz o Professor Ronaldo.

“(...) quando eu começo a ver que a turma começou a não prestar atenção, começou a ter conversa paralela, (...) aí eu paro para conversar com eles: O que que tá acontecendo? O que que tá faltando? Tão com dificuldade, não tão entendendo o que eu tô falando? (...) muda a maneira que eu tô dando aula... (...) largo um negócio que eles vêem que é interessante assim pra eles: (...) essa questão de perguntar: O que tá acontecendo? e entender o que eles estão falando. Tentar entender, o que é o mais difícil”. (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 579-590)

Assim, é possível visualizar os efeitos de uma pedagogia da escuta aberta, uma escuta do outro, um ouvir mais o outro, que muda e afeta os seres no agir e na relação:

“Primeiro: eu consigo vender a minha idéia muito melhor hoje. (...) Hoje eu consigo muito mais facilmente porque tu tem que lidar com os alunos todos os dias, são 9 pessoas numa turma, 20 e poucos na outra e tal... Tem que negociar este espaço, exatamente. Então tu tem que ouvir mais, acabou me mudando um pouco a minha maneira de agir pra esse tipo de atitude” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 570-576)

“Uma boa coordenação é ouvir os professores” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 230)

Trata-se, outrossim, de uma atitude na convivência, de uma postura na relação com. Segundo o Professor José Flori, a relação professor e aluno é uma relação de confiança. A confiança entre professor e aluno é um dos princípios fundantes da sua prática pedagógica, onde o pode contar comigo se materializa em postura ética, em compreensão.

“Eu disse: olha, tu fica até o momento que tu achar, se tu quer ir lá para o hospital agora, tu vai. Eu acho isso aí forma uma relação de confiança entre tu e o teu aluno. Ele sabe que pode contar contigo e que num outro momento tu sabe que tu pode contar com ele também. Acho que essa relação de confiança que eu tenho formado com eles, e de amizade, ela é importante para ambos sabe, na hora do aprendizado, na hora... das tuas dificuldades, já houve momentos difíceis e tal, que eu tive de contar com a compreensão deles também“. (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1074-1080)

(c) Sobre a autonomia
Ensinar a caminhar, que bela metáfora para uma pedagogia que se compreende preocupada pelas conseqüências das próprias ações sobre os outros. Ensinar a andar com suas próprias pernas, mostrar o caminho mas não caminhar pelo outro.

“(...) o meu objetivo é ser professor, é passar aquele conhecimento ali. (...) meu objetivo é só passar com a matéria que eu to ali, ensinar eles, ensinar a pesquisar, ensinar a caminhar e...tentar fazer com que eles entendam.” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 232-237)

(d) Sobre a interação, o vínculo e a empatia
Aqui a idéia é de que interagir é agir com, é agir junto, é ser, por um lado, afetado pela ação do outro e, por outro, afetar o outro através da nossa ação. Trata-se de estar aberto e se permitir ser afetado e não ter medo de afetar. É uma relação. Assim, também, a idéia de vínculo se constitui. Vincular é estabelecer alianças com o outro, é uma relação de aceitação do outro, de deixar-se afetar pelo outro. Estabelecer vínculos é fazer contratos que são aceitos por ambos os lados. Estabelecer vínculos é amarrar, grudar, é estabelecer nós de congruência.

Como destaca no relato o Professor Ademar, a interação com o aluno é a chave do negócio. É conquistar o aluno, é estabelecer vínculos. Uma pedagogia do vínculo. É ser amarrado, é criar alianças entre professor e alunos através do diálogo, da conversa, da palavra, da vida e da experiência do professor que, numa dimensão proxêmica e empática, cria laços recheados de sentidos e significados, fazendo os alunos sentir[em] que o professor é um cara como eles.
“Tu aprender a interagir com o aluno, essa é uma coisa que até eu tenho facilidade né, a interação com o aluno é chave do negócio. Em primeiro lugar tu tem que conquistar o aluno.
Porque muitas vezes bah Ademar, tu não deu aula nenhuma no primeiro dia, só ficou conversando! Esse é o primeiro esquema...tu acha que tu tá perdendo aula, tu não tá perdendo aula! Tu tá dando uma grande aula porque tu tá interagindo com o aluno, tu tá chamando” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 728-733)
“Então no primeiro dia eu falo sobre a minha vida, sobre a minha família, falo sobre....minhas dificuldades. Aí eles começam a sentir que o professor é um cara como eles também, e isso começa a aproximar. (...) Não adianta chegar no primeiro dia despejar um monte de matéria, porque vocês tem que estudar, porque senão vocês não vão ser nada na vida!” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 739-744)

(e) Sobre o comprometimento e a força coletiva
Trabalhar coletivamente, eis um desafio para os sujeitos que fazem a escola. Comprometerem-se juntos num projeto de escola, respeitando o outro como legítimo outro na convivência, no espaço da escola e na construção do Projeto Pedagógico. Ter apoio, dar apoio, trabalhar juntos, em parceria, comprometendo-se mutuamente com o planejamento, o desenvolvimento e os resultados colhidos na escola.

“(...) uma coisa eu aprendi na vida: todas as pessoas que se colocaram desta forma [num pedestal ou num patamar superior] uma hora destas o pedestal pode quebrar, pode cair e ela olhar para os lados e se encontrar sozinha, não tem apoio, agora no momento em que tu discute uma forma de trabalho com alguém, esse alguém também se sente comprometido contigo, porque aquilo ali é uma força de trabalho conjunto, e a escola, a escola não pode ser diferente disso!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1180-1184)

Trata-se de uma dimensão ética, de uma relação que se dispõe a aceitar o outro, sendo afetado e afetar o outro, enquanto força de trabalho conjunta, enquanto relação gregária; de juntos, se comprometer com o trabalho; de estar-junto e não isolado ou de se encontrar sozinho.

(f) Sobre o abraço, o cuidado, o gozo, o afeto (e que afeta)
As formaturas na escola são situações e eventos lembrados sempre com emoção pelos professores. O discurso, a referência e o carinho das palavras que o aluno - com dificuldade no período de formação - profere lembrando e agradecendo ao professor que, assim como um pai presente, presta apoio, pega pela mão e não o deixa desistir. Uma pedagogia amorosa que contempla a atenção ao outro.

“(...) ele [o aluno que por várias vezes havia tentado desistir do curso] disse que eu tinha sido mais do que um professor, eu fui um pai pra ele, que eu peguei ele pela mão e não deixei ele sair da escola, isso são palavras dele. Então aquilo ali, depois os meus colegas né, me elogiaram muito, fizeram referência aquilo ali.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1228-1232)

Os momentos especiais vividos na escola, lembranças de alegria e entusiasmo do professor José Flori, como a primeira vez em que foi escolhido como paraninfo:

“(...) esses momentos especiais dentro da escola, acredito que a primeira vez que eu fui escolhido como paraninfo de turma (...), eu considerei o máximo” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1290-1291)

Ou como a formatura do seu filho na escola, lugar onde também se formou e hoje leciona, são considerados como o ápice de tudo, o máximo, uma pedagogia do gozo. A possibilidade do pai de participar como professor da formação e da formatura do filho, a oportunidade de ver seu filho trilhando um caminho semelhante ao seu e participando da vida profissional do filho, são oportunidades singulares saboreadas pelo pai/professor:

“(...) e um momento que foi muito importante para mim no ano passado foi a formatura do meu filho lá né tchê! Isso aí talvez foi o ápice de tudo né, de tu estar presente, de tu ter sido professor dele também, (...) e ver a formatura dele, o caminho numa escola que eu também me formei, assim foi um bah!... foi um, sei lá né tchê... um pai poder participar da vida profissional de um filho é... é uma coisa que não é qualquer um né, aliás essa oportunidade não surge para qualquer um, digamos assim né!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1309-1315)

São experiências que mudam e afetam, não só as condições materiais e de acesso ao mundo profissional - como é o caso do Professor José Flori que de aluno do Curso Técnico da Escola Mesquita passa a ser professor -, mas que afetam e mudam nossa forma de se ver o mundo, as coisas e a si mesmo.

"Passar pela escola, seja como aluno ou professor é uma experiência que deixa marcas, vestígios e cicatrizes muitas vezes profundas, mas que fundamentalmente mudam e afetam a forma de se ver o mundo, as coisas e a si mesmo" (Arenhaldt, Diário de Reflexões, 05 de dezembro de 2004).
A escola afeta quem por ela passa. Sofremos influências na convivência da escola. Quem uma vez deixou-se inundar pela escola, transforma seu jeito de ser, transforma-se enquanto pessoa.

“(...) tu faz parte da vida das pessoas, querendo ou não, alguma coisa tu marca na vida das pessoas que fizeram parte... assim como professores fizeram parte da minha vida, com certeza eu devo tá fazendo parte da vida de muita gente que passou pela escola né” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1285-1288)

“(...) a influência da escola, e a influência que uma pessoa sofre... pode sofrer pela escola. Positiva no caso” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 3-4)
Positiva ou negativamente, a escola afeta e influencia quem por ela passa, assim como influenciamos os outros nesta passagem e convivência:

“Em algumas ocasiões, pelo que me disseram, eu já influenciei alguns alunos. Numa vez num depoimento, que eu não vi o depoimento, era um aluno que um ano atrás encontrei no (...) aqui na Assis Brasil, tava trabalhando. Ele tava pra desistir, teve problemas particulares muito sérios e eu conversei com ele e senti que algumas coisas... e ele continuou, (...) pegou no microfone e na formatura das turma de mecânica ele pediu pra falar e reclamar da minha não presença ali e... porque eles tavam queimando alguns professores ali, e ele não, disse que as minhas aulas tinham sido de arrepiar. (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 486-493)
Trata-se de uma pedagogia do arrepio, uma pedagogia que arrepia, desencadeadora de múltiplas emoções.

(g) Sobre o prazer, o acolhimento e o sabor
O relato da docência manifesta prazer, manifesta sabor em ser professor. O prazer de ensinar, o prazer de estar na escola, o prazer de se sentir em casa na própria escola. Estar na escola, mediado pelo sabor do trabalho de educar os alunos, é comparado ao estar em casa, me sinto em casa. A escola é o lugar em que me sinto bem, lugar de prazer, lugar de acolhimento do outro.

“(...) esse momento assim da escola (...) eu faço isso como uma coisa prazeirosa... trabalhar, educar os alunos. Esses dias na escola... o momento na escola pra mim é... me sinto em casa, me sinto bem graças a Deus.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1241-1243)

“E é claro que isso preencheu uma parte importante pra mim né. (...), eu acredito que dar aula por dar aula, porque eu preciso um complemento de salário é uma coisa e outra coisa é tu estar dando aula, estar lecionando como uma coisa que tu gosta, como uma coisa que te preenche, te dá prazer em fazer eu acredito que é um pouco diferente. Porque, e como era uma coisa que eu almejava né pra mim, eu acredito que isso preencheu” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1272-1277)

Trata-se de uma pedagogia prenhe de sentido, que preenche de sentido a vida, que dá prazer ao viver: O meu trabalho na escola é a minha vida, diz Professor José Flori:

“(...) eu me orgulho daquilo que eu faço. O meu trabalho na escola ele é a minha vida, eu acho que isso aí é uma coisa que veio assim a contribuir muito para mim, trabalhar na Escola Mesquita para mim é um trabalho muito importante” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 893-896)

Se, para o Professor José Flori, o momento da escola é um tempo de prazer, uma coisa que te preenche, também para o Professor Ricardo o gosto de ir lá dar aula está nos alunos e no que estão aprendendo. Assim, é o prazer, o gosto que a atividade docente agrega, que move, mobiliza e, por sua vez, dá sustentação à vida da docência.

“(...) sei lá, ir lá dar aula, ver o que o pessoal tem pra fazer, o que que eles vão aprender...ver se eles tão gostando da aula, alguma coisa que eles acham importante...tão gostando, tão aprendendo, tão estudando...isso me move assim, ver que eles tão se dedicando um pouquinho, isso é uma coisa que me move pra ir dar aula, gosto disso. (...) É uma coisa que me move é chegar lá, vou dar uma aula e às vezes a aula sai muito melhor que o esperado.” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 371-379)

Esta é a mola propulsora da docência: a satisfação, o gosto e o sabor em ensinar, em interagir, de ajudar o outro. De ter uma satisfação, de ajudar as pessoas a melhorar profissionalmente, enquanto ser humano, enquanto pessoa, assim como o prazer em saber que tu faz parte da vida destas pessoas.

“Mas é um desafio gostoso assim né! É uma satisfação, né tchê, que eu sempre tive de ensinar, de procurar essa interação, de passar a minha profissão, de ajudar. De uma forma ou de outra, se o dinheiro lá que eu recebo me ajuda, mas eu tenho certeza absoluta que eu ajudo muito as pessoas a melhorar profissionalmente. Eu acho que isso é uma mola né, uma mola propulsora de tudo, né! De ter uma satisfação, de considerar que a tua profissão ajuda as pessoas a melhorar profissionalmente, enquanto ser humano, enquanto pessoa, que aquilo até vai desencadear uma outra coisa na família dele e tal, que tu faz parte da vida destas pessoas” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 1215-1222)

(h) Sobre o respeito, o reconhecimento, a cumplicidade
Uma pedagogia que respeite e reconheça o que o aluno traz da sua vida para a escola, eis um desafio manifesto pelo Professor Sidney, e que se fundamenta na relação de cumplicidade entre professor e aluno, de uma cumplicidade com a aprendizagem do aluno; em que o professor vibre com o crescimento do aluno.

“Os desafios...exatamente esse: conseguir acrescentar alguma coisa naquilo que o aluno traz. (...) o desafio é permitir que o aluno continue crescendo, mas de forma organizada, sendo respeitado por isso, sendo reconhecido por isso, ele tem que fazer parte do processo. (...) Como dizia Gibran Kalil, não reprima, seja cúmplice. Não perca a oportunidade de crescer. Então o professor tem que vibrar com o crescimento do aluno.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 528-538)

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Como vimos, múltiplas éticas pedagógicas foram manifestadas no relato da docência. Muitas outras não foram anunciadas, não foram percebidas e interpretadas neste estudo. Não há dúvida de que tantas outras éticas pedagógicas poderiam ter sido captadas e visibilizadas no relato e no testemunho da docência. Assim, reconhecendo os limites das condições interpretativas, pergunto:

- Que outras tantas éticas pedagógicas seriam apresentadas se outros docentes fossem seus narradores?
- Que outras éticas pedagógicas poderiam emergir se novos narradores incorporassem seus testemunhos na pesquisa?
- Que outras éticas pedagógicas se apresentariam se outro escuta-dor interpretasse tais testemunhos?


No testemunho e na voz da docência, visualizamos múltiplas éticas pedagógicas agregadoras enquanto dizer, ser, estar e afirmar-se docente. São éticas que manifestam múltiplas emoções estéticas da docência; que se situam num vetor comum de dizeres e posturas, transfiguradas em manifestações de compreensão, de respeito, de prazer, e outras tantas já referidas.

- Onde estariam, então, as manifestações das éticas pedagógicas da indiferença, do tédio, da mediocridade, da exclusão, do preconceito, da tristeza, da lástima, da queixa, da chatice, da intolerância, do reclame, da intriga, do ressentimento, da rivalidade, do desrespeito, da omissão, da humilhação, do insulto, da truculência, da covardia, do medo, da conivência, da conveniência, do interesse individual, da negligência, da mentira, do engano, da trapaça, da vingança, da inveja, do desprezo, da negação do outro?

- E, fundamentalmente, poderiam estas serem manifestadas nos relatos?

Então, vamos a uma outra leitura das Cartas, aquilo que é manifestado no jogo interativo da docência, na convivência da escola de educação profissional. Cabe destacar que, a seguir, dissertarei sobre o não-dito no relato de vida da docência, mas sobre o que é captado e manifestado no estar-junto da escola.

[1] Faço uso das idéias de prender, grudar e firmar na perspectiva daquilo que pega, cola, liga, conglutina, adere, daquilo que aglutina e glutina, ou seja, que liga com substância viscosa, que une e reúne. Pode-se fazer referência a noção de viscosidade social (MAFFESOLI, 2003) e de viscoso (BAUMAN, 1998).
[2] Para Maturana (1999, p.23): “o amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência"
[3] Sobre tal perspectiva cabe trazer as palavras de Maffesoli (1993 p. 162-3): "Aunque parezca evidente, hay que indicar, así sea como pistas para la investigación posterior, que lo propio de la lógica del 'deber-ser', base de la actividad concptual o sistemática, es ante todo de orden moral. Creo que cabe hacer una distinción entre la ética que mana del propio cuerpo social, que sirve de cimiento y cumple una función de equilibrio cenestésico (a este respecto he hablado de 'inmoralismo ético', cf. L'ombre de Dionysos, París, 1982), y la moral impuesta siempre desde fuera, imposición que no puede ser más loable, ya que se trata de hacer, auque sea de mala gana, la felicidad de la masa."
[4] Segundo Maffesoli (1998, p.137): "uma ética da estética, isto é, para um ethos constituído a partir de emoções partilhadas em comum. (...) Deve-se entender estética, aqui, em seu sentido mais simples: vibrar em comum, sentir em uníssono, experimentar coletivamente."