Quarta Carta - Nega-ções e int-erro-gações: as turbulências e desestabilizações do ser docente


Carta 4 - Esta Carta de características imagéticas desfigurantes representa os processos de negação, desestruturação, desestabilização e geradores de turbulência. Diz respeito aos processos e movimentos que revelam situações de dificuldades inerentes ao viver, fazer e ser professor. Ilustra os questionamentos e interrogações da docência, dos processos que fazem a docência repensar-se, colocando em dúvida a possibilidade de afirmar-se, de existir enquanto tal, inclusive como motivadores e mobilizadores de um desejo de desistência de continuar vivendo a docência e a escola. Esta Carta foi inpirada na obra Construção Mole com Feijões Cozidos, 1936, de Salvador Dali.

Nem tudo são flores na vida. Nem tudo são flores na docência. São muitas as dificuldades de se viver a docência. Dificuldades que, por vezes, são mobilizadoras de um desejo de desistência de se continuar vivendo a docência e a escola. As dúvidas e interrogações podem se corporeificar em processos de negação da docência na pessoa, assim como na negação da possibilidade de um vir a ser professor, de um afirmar-se docente.

“(...) mas isso são ossos do ofício que eu digo,
são coisas que...é...nem tudo são flores. Tudo é assim na vida”.

(Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 841- 842)

"(...) colocaram em dúvida a minha integridade como professor"
(Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 438-439)

- Quais histórias negam a docência?

- Quais histórias revelam os processos de desestabilizações do ser docente?

Manifestações como: "eu não era professor!", "Eu não me considerava professor", "ser professor, eu?", "até hoje acho que estou quebrando o galho", "eu não tinha formação", são ilustrativas dos questionamentos e interrogações da docência, dos processos que colocam em dúvida, em cheque, e interrogam a docência na sua possibilidade de afirmar-se, de existir enquanto tal.

“Eles me admitiram na escola e aquilo ali, inclusive na época, eu pensava, tchê, que era, que eu ia ser admitido até o final do ano, então eu (risos)... porque na verdade, olha só o que tá escrito na carteira [puxa da gaveta sua carteira de trabalho] né: professor, (...) que... eu não era professor! Não considero... aliás, como eu não tenho uma formação, até hoje eu acho que estou quebrando o galho né tchê... é dessa coisa aí... sabe... eu não me considerava... ser professor... eu?! Aquilo não soava bem pra mim, entendeu?! Quando alguém chamava: Professor! Professor!. Participava daquelas reuniões pedagógicas da escola, entrava mudo e saia calado, que eu era o único que não tinha... sabe... eu me considerava inferior a todo mundo né! Porque eu não tinha formação, cara. Eu tava ali e tal desempenhando minha função, então, essas coisas assim foram acontecendo né, e claro que eu fui lutando por elas... não tenha a menor dúvida disso, senão elas não acontecem” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 680-691)

Se por um lado, o fato do professor ter a carteira assinada como "professor" o identifica como tal, por outro, o fato de não ter formação docente o faz pensar que, até hoje, é um quebrar galho, um professor improvisado. Nesta dimensão, a não formação docente também é sinônimo de insegurança na permanência na escola e, assim, de poder afirmar-se docente com todas as letras.
“(...) mas eu acredito que só vou me sentir mais seguro no dia em que eu tiver um canudo na mão” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 803-804)

Já na perspectiva do Professor Ronaldo que, por ter adiado a realização do curso superior, acabou nem pensando em ir para a docência, pois seu projeto profissional contemplava, antes de tudo, trabalhar por conta própria, a docência não era prioridade, mas aconteceu.

“Então, por este motivo, de ter adiado um curso superior que eu acabei nunca indo pra docência e também não pensando muito no assunto até porque a idéia era ter a empresa e trabalhar por conta própria” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 266-268)

Sua prioridade é obter um bom emprego, um bom salário. Se conseguir isso, pra que eu vou dar aula?

“(...) se eu conseguir no ramo privado ter uma boa... um bom emprego, um salário, pra que eu vou dar aula? (...) então vamos deixar as coisas se decidirem” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, 638-642)

E as coisas acabaram se decidindo. A docência, o dar aulas, o cargo de professor apareceu como uma possibilidade. Assim, quando perguntado se se considera um professor, Ronaldo responde de forma objetiva:

“Tentando ser...” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linha 439)

E explica:

“Eu sou professor de... ou instrutor... no início eu usava o termo instrutor, hoje eu uso professor porque é um curso técnico, então eu uso o termo professor... Ah, um professor de programação e trabalho como programador de desenvolvimento e controle. Eu não uso... professor eu até uso o cargo para simplificar, porque... Ah, eu dou aula! Quer dizer dar aula é um termo errado! Então é mais fácil usar o termo professor, agora eu não digo o meu cargo na empresa, eu não... Ah, eu sou projetista. Projetista também não diz nada, não diz a minha formação, não diz... então, ah, eu programo e desenvolvo equipamentos, então eu não assumo um título!” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, 445-452).

O Professor Ronaldo não se afirma professor, usa o termo professor como cargo no sentido de simplificar e facilitar a compreensão da atividade que está a executar na escola, já que entende que usar o termo dar aulas ou instrutor não está certo: "Quer dizer dar aula é um termo errado!"

Talvez por tudo isso também não se considere um bom professor:

“Então, hoje eu sempre me considero que eu poderia fazer as coisas muito melhor do que eu faço. (...) quando me considero um professor, eu não me considero um bom professor”. (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 417-419)

“(...) pra mim eu sempre me considero um profissional abaixo do que eu poderia ser. Por isso eu não me considero um professor.” (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, linhas 428-429)

Devido ao acúmulo de atividades, como o dar aulas, o trabalho na empresa e o curso superior, ou seja, o ritmo acelerado, pensou em largar alguma das atividades, pensou em desistir, e poderia ser desistir de dar aula.

"Eu tenho que largar alguma coisa que eu não vou conseguir manter neste ritmo por muito tempo. (...) isso foi uma coisa que me levou a pensar em desistir de algumas das coisas, que poderia ser em dar aula, ou do trabalho, ou de estudar”. (Ronaldo, 34, Prof. de Informática, Relato de Vida, 620-630)

Largar tudo, também já foi pensamento do Professor Ademar. Chegou a repensar seriamente no fato de continuar sendo professor, em permanecer na docência, já que os desafios e a pressão da escola estavam a afetar outras dimensões da sua vida. Pensou em mudar, largar tudo e ir embora, já que isso aí [a preocupação gerada pela atividade docente] não é pra um ser humano.

“(...) outra coisa que me marcou foi a aula à noite, (...) começou...ó, vamos ter que abrir um curso pra noite e eu preciso que tu dê a eletricidade. (...) Aí caiu outra ficha né, e aí eu fiquei muito preocupado, aquelas alturas eu tava querendo casar, eu já tava repensando né: Daqui a pouco eu vou largar tudo e vou me embora, isso aí não é pra um ser humano". (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 286-292)

A docência e a escola são reveladores de múltiplas situações e momentos difíceis. Alguns deles motivadores da possibilidade de desistir desta profissão, e assim se constituir como processo de negação da docência na pessoa, outros são compreendidos como dificuldades inerentes ao fazer e ao ser professor, passíveis de superação. No entanto, ambos fazem o sujeito repensar e refletir, pois desestruturam, desestabilizam e são geradores de turbulência.

Os momentos difíceis, lembrados no relato da docência, ganham sotaque de emoção: lembranças do desastre total de uma aula, do aluno questionador, do aluno que mobiliza todo mundo, da questão salarial ou da necessidade de dedicação que o magistério impõe, são alguns dos aspectos de turbulência e desestabilização da docência.

fui dar minha aula e foi um desastre! Foi um desastre total. Fiquei arrasado

“(...) naquela época eu era um guri ainda e aí ... eu fiquei apavorado! Eu preparei minha aula né, peguei o assunto, dei uma olhada, dei uma lida e tal, mas sem muito comprometimento. E aí eu fui dar minha aula e foi um desastre! Foi um desastre total. (...) Mas malharam, detonaram: Pô, como é que tu dá aula lá desse jeito? Bah os caras detonaram mesmo. Aí sim fiquei apavorado, fiquei arrasado” (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 405-413)

o aluno questionador (...) aluno que agita né...que mobiliza todo mundo (...) reclama, atiça os outros pra reclamar junto

“Mas momentos difíceis assim eu já tive vários... ainda mais porque existe o aluno questionador e...o que te pergunta pra ver se tu sabe, e o que pergunta quando tem dúvida própria. (...) outra coisa que eu não sou muito fã, é aluno que agita né...que mobiliza todo mundo, mas faz tudo. (...) eu já vi muito, aluno que reclama, reclama, reclama, atiça os outros pra reclamar junto, mas tu chega lá e ele tá fazendo tudo”. (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 344-350)

O ensino público paga pouco e pagando pouco chega um momento que a pessoa tem dúvidas

“Os momentos mais difíceis [pausa longa] até foram assim ó, estavam ligados à questão salarial. O ensino público paga pouco e pagando pouco chega um momento que a pessoa tem dúvidas. Pô, tudo bem, tô fazendo um trabalho, ele é estimulante e tal, porém financeiramente não compensava. E alguns colegas largando, indo pra empresas, ganhando muito mais...e essas foram as dúvidas que surgiram. Assim, em sala de aula, não houve maior problema...sempre foi gratificante. (...) Quando dava esses problemas, eu procurava um trabalho na indústria, remanejava horário e resolvia o problema financeiro e sempre priorizando o ensino. Eu era professor. As minhas saídas foram esporádicas e até tive propostas de ficar fora, não deu, porque aí eu tive que largar o magistério, aí eu sei que... aí eu peguei coisas que agregavam valor monetário mesmo, inclusive, mas eu voltei...” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 426-438)

ser professor demanda um tempo (...) eu tinha uma falta de tempo

“O problema que eu tive foi a falta de tempo. Querendo ou não, ser professor demanda um tempo fora de sala de aula, do cão. Então eu tinha uma falta de tempo, porque tinha dois, três empregos, junto com dar aula...falei bah, uma coisa eu vou desistir! Mas nunca pensei em desistir de ser professor” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 337-340)

Tanto o Professor Sidney quanto o Professor Ricardo destacam que mesmo com as dificuldades que a opção e a atividade docente acarreta, sejam de ordem financeira ou de tempo para se dedicar à docência, ambos não pensam em largar ou desistir de ser professor. Apesar da falta de tempo, nunca pensei em desistir de ser professor, diz o Professor Ricardo. Apesar da desvalorização salarial, sempre prioriz[ei] o ensino, pois Eu era professor, diz o Professor Sidney. Em outras palavras, revelam: Somos professores, afirmamo-nos professores apesar de tudo. Trata-se, como visibilizaremos na próxima Carta, das a-firma-ções de ser docente.

As dores geradas pelas dificuldades da vida, sem dúvida, afetam, mas estão longe de ser concebidas como negação de vida. São, antes de tudo, manifestações de fluxos que possibilitam um ressignificar a si mesmo, um refletir sobre os per-cursos da própria vida e, por que não dizer, afirmar um jeito de ser e estar na docência hoje. Existe um ensinamento, um saber provocado pela dor, que deixa marcas, cicatrizes e que afeta sobremaneira a forma de ser e de estar no mundo e na docência, bem como a forma com que se percebe e interage com o outro. Para Hara (2004, p. 116), "É através da dor que a vontade de superar a si mesmo se realiza."

"Essa vontade de superação de si mesmo impede que o domínio de si transforme-se numa prisão, numa identidade ensimesmada, hermeticamente fechada às novas experiências e vivências, portanto inapta para apreender e saborear novos sentidos que a vida e o acaso oferecem." (HARA, 2004, p. 108)

É uma forma de superação, de tornar-se mais, de afirmar-se. Trata-se de uma vontade de superação de si presente nos relatos de vida, de uma perspectiva de ir além de si, permitindo-se degustar os sabores das (com)vivências com mais intensidade, sejam eles prazerosas ou sofridas (MACHADO, 2004).

Porém, se a dor de ser docente pode provocar processos de superação de si, a negação da dor e do sofrimento pode se configurar como negação da docência em si, a inexistência e a desistência de si como professor. Negar a dor de ser docente é uma forma de auto-anestesiamento, da conformação do docente inexistente.

Penso na docência que inexiste, na docência que desiste de ser docência. Penso na docência sem face, sem cara e coração. Na docência burocrática e racional. Na docência enclausurada nas próprias máscaras, escudos, elmos e carapaças que revelam a própria inexistência da docência na pessoa. No vazio e no vácuo da docência. Na docência-sombra, que é somente silhueta. Na docência que não tem corpo, não tem sangue nem suor. Na docência fria, sem sabor, sem alegria nem dor. Na docência que não incorpora, não sente, não afeta e não é afetada. Na docência anestesiada e anestesiante. Na docência que não dança e não pulsa, que não sonha e não canta, que não vibra e não adoece, que não chora e não ri, que não sente o frescor da brisa à beira do abismo. Na docência que não vive. Na docência bibelô. Na docência que desistiu. Na docência morta.

É possível de se pensar que algumas manifestações de docência não tenham percebido que já morreram ou que nem existem mais. Talvez nunca tenham existido (pelo menos enquanto docentes).