(4) Os rituais celebrativos das primeiras aulas

Os docentes entrevistados fazem questão de lembrar dos detalhes, da relação estabelecida com a primeira turma, das reações dos alunos, das estratégias de interação e das sensações de estar numa sala de aula com a responsabilidade de ser o professor. Lembram da primeira aula como um ritual, um verdadeiro evento de batismo em que são banhados pela água da docência.

Professor José Flori, um ex-aluno da escola, não nega o nervosismo e as trapalhadas da primeira aula, já que isso é normal do ser humano diante do desafio tamanho da grandeza e da responsabilidade de ser professor.

“Aí eu fui dar aula pra turma. (...) eu era um ex-aluno da escola que estava ali quebrando um galho, talvez até o pessoal relevou um pouco a minha a forma talvez um pouco nervosa de tentar passar a matéria, né. Mas eu sei que talvez minha, meio atrapalhado no quadro, aquela coisa toda, frente a uma turma, frente aquela responsabilidade toda, hi... é normal do ser humano. Eu sei que já fazia uma meia hora que eu falava naquela turma e ninguém nem respirava tchê, assim (risos). Sabe... não tu sabe... os caras te olhando, né... e eu ficava olhando aquilo, pá, e olhava pra turma e todo mundo te olhava né... todo mundo parado me olhando e eu explicava, explicava e virava para a turma e nada. Ninguém falava!” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 586- 594)

Todo mundo te olhava. A angústia dos primeiros momentos que se parecem com uma eternidade, ninguém falava! ninguém me perguntava nada! Até que começou uma interação, um diálogo com a turma. Aí a coisa fluiu, consegui relaxar um pouco.

“(...) eu pensava comigo assim: ou eles não estão entendendo nada, ou eles estão entendendo tudo! Porque se tu não está entendendo nada a tendência é tu fazer pergunta, e ninguém me perguntava nada! Bah, eu sei que, olha cara, foi... aquela meia hora ali, em torno de meia hora ali foi uma eternidade pra mim. Sei que lá pelas tantas um cara lá do canto fez uma pergunta pra mim, parecia que tinha me jogado um balde de água fria, que relaxou né cara! Começou uma interação né, e tu começa um diálogo com a turma. E aí é claro, consegui sabe, relaxar um pouco e começar a dialogar, aquele negócio todo sabe, explicar aquela matéria que eu tava passando pros caras.” (José Flori, 51, Prof. Desenho Técnico e CAD, Relato de Vida, linhas 596-603)

O Professor Ricardo encontrou, também, na interação e na sua disponibilidade para com os alunos uma estratégia no sentido de estabelecer vínculos desde a primeira turma de alunos: coloca no quadro telefone e endereço eletrônico.

“Primeiro dia de aula dei meu telefone celular, dei tudo pra eles assim...até hoje eu faço, primeiro dia de aula eu boto meu nome no quadro, boto telefone celular, pra alguns o telefone de casa às vezes, boto meu e-mail, boto... ó, qualquer coisa pode me ligar aí. Até hoje tem aluno da minha primeira turma que me liga, (...) volta e meia a gente escreve e-mail, isso eu faço até hoje. Porque professor nenhum imagina dar seu telefone pra um aluno” (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 191-196)

A primeira experiência de ingresso na sala de aula para o Professor Sidney acontece no seu estágio docente. Deixa claro, desde o início, que não tem experiência e faz desta condição a possibilidade de um contrato com os alunos nos seguintes termos: vocês me ajudam e eu ajudo vocês.

“Olhei aquela turma, sala cheia e pensei, esses cara vão ter que me ajudar, não posso...cheguei e expliquei: eu vou dar uma aula pra vocês, é no estágio, não tenho experiência, vou usar o que eu conheço e eu espero que vocês me ajudem no sentido de apontar o que não entenderam etc. e tal. Comecei como eu aprendi na época, fiz uma introdução inicial, dei uma parte motivacional, mais ou menos disse o que seria visto naquela aula, transmiti um bloco de informações, fiz um conjunto de perguntas, que eu já trazia prontas, não me arrisquei a não trazer as perguntas prontas. Ouvi as respostas, respondi, se respondi não me lembro bem, agora só me lembro de uma coisa, quando bateu [o sinal], os alunos disseram: terminou a aula! Eu digo: não, terminou o primeiro período. Não professor, já é 11 horas, amanhã a gente tem que trabalhar cedo. Pra mim fazia meia hora, e eles mandando embora...foi a experiência da minha primeira aula. Aí eu vi que não era difícil, que eu conseguia, e dei as aulas. E essas foram minhas primeiras aulas.” (Sidney, 60, Coordenador Técnico, Relato de Vida, linhas 356-368)

Assim como para o Professor José Flori, também para o Professor Sidney, a noção de tempo da primeira aula se transforma, se alonga, se estende e se expande. O tempo não é percebido em sua dimensão cronológica. O tempo é intenso, é eterno, é aqui e agora.

Para o Professor Ademar, o ritual de batismo na docência não é muito diferente. É lembrado de forma intensa, "Eu nunca vou esquecer". Entrar na sala de aula, pela primeira vez, é acessar outra dimensão.

“Bom, aí eu comecei. Cheguei de noite lá e aí tava aqueles caras esperando por mim. Eu nunca vou esquecer (...). Aí cheguei e dei o sinal, a sirene lá, aí o diretor chegou: Vamos entrar na sala de aula. Chegou, me apresentou como professor e tal. O pessoal ficou me olhando e eu olhei pra um pessoal assim...tinha uns caras fazendo assim [fazendo o gesto de botar a mão na cabeça]... tá, to ferrado (risos), como quem diz não vai dar certo isso aqui”. (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 298-306)

Faz parte do ritual de batismo ser apresentado como o professor. Fluxos de olhares, de professor para alunos, de alunos para professor. Um fluxo que capta inclusive o pensamento através do olhar ou de um gesto sutil. Num primeiro momento, um fluxo, onde o professor - mais jovem que seus alunos - sente-se acuado, apavorado, mas que, a partir da disponibilidade em encarar os caras e começar a primeira aula, aos poucos vai ganhando confiança e tranqüilidade.

“Mão na cabeça, sabe aquele gesto sutil, mas que tá apavorado. Que tá apavorado num canto, que nem cão. (...) Acuado. Mas percebe de cara, já sabe até o que o cara pensou naquela hora. Tudo bem, eu vou encarar os caras. Daí comecei a primeira aula e tal, e a 2a e a 3a e tal e foi, foi indo tranqüilo aí eu vi a carência dos caras (...) Aí eu começava a ganhar tranqüilidade” . (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial, Relato de Vida, linhas 308-316)

Fiquei nervoso, a perna tremeu um pouco. A sensação de insegurança dos inexperientes, que nunca entraram numa sala de aula, é notória e manifesta nos relatos. Como diz o professor Sandro, se eu entrar na sala e conseguir falar, tá ótimo já que havia entrado num fogo cruzado, substituindo um professor afastado.

"Como tu disse que estava inseguro né, para dar aula, então eu vou te dar uma chance, eu vou te apresentar para a turma hoje.(...) Tu tem 11 dias para ajeitar as suas aulas e começar a dar aula, o conteúdo começa aqui ó [diz o Coordenador Pedagógico da Escola]. Eu tava substituindo um professor que tinha saído, porque havia um desentendimento com a turma.(...) e eu pensava comigo, se eu entrar na sala e conseguir falar, tá ótimo. (...) ai entrei na sala de aula e fui dar aula né, e... mas (...) pra minha grata surpresa, eu comecei a falar, fiquei nervoso, a perna tremeu um pouco, mas daqui a pouco passou. Aí, era um conteúdo lá, comecei o conteúdo, pá, pá, conteúdo vai, vai, perguntava para um, para o outro e tal: Vocês tão me entendendo o que eu to falando?. Não, tá, tá bom, pode ir tocando. Aí fui, dei aula, aí no final da aula um aluno disse assim: Ah graças a Deus uma aula, que aula boa, eu tava esperando isso faz tempo!". (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica, Relato de Vida, linhas 752-782)

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Ilustrativo e significativo é o que se gesta de dentro dos medos, inseguranças, apreensões dos primeiro momentos da docência, ou seja, as condições de possibilidades para afirmar-se docente. Nos relatos, apesar das angústias geradas pelo fato de ingressar na sala de aula como professor, são testemunhados também os movimentos pelos quais os entrevistados iniciam um processo de afirmação docente na pessoa. Aí eu vi que não era difícil, que eu conseguia, e dei as aulas (Sidney, 60, Coordenador Técnico); comecei a conversar com eles, aí foi tranqüilo (Ricardo, 32, Prof. de Eletrônica); comecei a sentir que dava resultado, eu fui pegando as manhas, Aí eu começava a ganhar tranqüilidade (Ademar, 50, Prof. de Automação Industrial), ou da fala de um aluno que ao final da primeira aula diz: "Ah graças a Deus uma aula, que aula boa, eu tava esperando isso faz tempo!". (Sandro, 35, Prof. de Eletrônica). Trata-se de um processo de afirmação da docência, superando assim medos e pavores que poderiam ser um dos aspectos responsáveis pela negação da docência na pessoa.

O ingresso na sala de aula é celebrado como um ritual de passagem. A trama contada e relatada por cada um dos entrevistados é única. É uma experiência intransferível e ninguém pode sentir pelo outro o que é entrar pela primeira vez numa sala de aula, assim como ninguém pode descrever as sensações vividas e experimentadas pelo outro. No entanto, quando instigados a lembrar do fluir de emoções provocadas pelas primeiras aulas, os narradores parecem lançados para muito além de si, parecem acessar outras dimensões de si mesmo.

Vale destacar também que, sempre que apresento e discuto a dissertação e as questões que estou pesquisando com algum professor, tenho percebido, e isso não foi diferente com os docentes participantes desta pesquisa, que todos lembram com emoção dos primeiros tempos, da primeira aula. Todos têm uma história curiosa para contar, detalhes para lembrar: recordam dos alunos, da turma, das sensações mais diversas que viveu. Lembrar das primeiras aulas afeta com emoção, é um fluir de sensações. Lembrar das primeiras aulas é uma forma de se afirmar, de anunciar, para quem o escuta, em alto e bom tom, uma mensagem: sou docente, pois também passei na primeira prova e no primeiro teste, o das primeiras aulas.