Os devaneios no Mundo da Memória do Tudo
Outro texto dentro do contexto e desde outro lugar de escrita:
Quando criança ficava intrigado com muitas coisas, mas ficava quieto, ficava calado. As intrigas eram minhas, achava que não eram de mais ninguém. Não era importante, naturalmente, avisar aos outros sobre as minhas intrigas. Com o tempo, é claro, as intrigas não eram mais tão intrigantes assim. Afinal, o mundo não deveria ser intrigante mesmo, porque eu o tornaria assim? Na verdade não me preocupava se as coisas eram ou não intrigantes, isso não importava.
Se hoje nisso penso, é de certa forma intrigado com essa perda da capacidade de intrigar-se com o mundo, as coisas e a vida. Intrigo-me com um certo anestesiamento do sensível, com um certo condicionamento do pensar e com o vazio daquilo que nada mais nos surpreende. Intrigo-me com incapacidade do poder da pergunta e da intriga. O sentimento que parece tomar conta dos corpos e dos espíritos é de que nada mais intriga, de que nada mais é tão intrigante que mereça nossa atenção.
Sempre me intriguei com os seres diferentes de mim. As formigas no quintal, por exemplo. Lembro que diariamente, depois do meio dia, levava até a "boca do seu ninho" (era assim que eu o chamava) uma colherzinha de açúcar, pensando que as alimentava. Colocava outros "alimentos" mas era de açúcar que elas gostavam. Em poucos minutos elas levavam todos os grãozinhos de açúcar para dentro da boca do ninho. Ficava intrigado e ficava imaginando como seria o ninho por dentro, a sua casa por dentro. Para mim eram formigas demasiados humanas, embora diferentes de mim. Eu tinha um profundo sentimento de solidariedade e compaixão para com as formigas. Não lembro de querer ser uma, mas lembro bem da imagem de muitas delas, tinha uma empatia por elas. Ficava me colocando no seu lugar e tentando imaginar o que elas imaginavam do mundo, como viam as coisas e como me viam.
Intrigava-me também por que eu tinha nascido na minha família. Porque exatamente (n)esta família? E se um dia mudasse de face, não me reconheceriam. Mas será que em outra família estaria? E se noutro corpo viveria, como seria? E como veria o mundo desde outro corpo e outros olhos?
Sonhava acordado múltiplos mundos imaginários. Me pegava sonhando por dentro dos meus pensamentos. Quase como um meta-sonho, quando se sonha dentro do sonho, ou da experiência de se ver se vendo refletido no espelho. Sair de si para ver a si e o seu próprio reflexo.
Ficava pensando também que tudo aquilo que a gente pensava, dizia e fazia seria gravado em algum lugar. Era como se existisse uma mega memória que tudo captava. E no dia do juízo final tudo era recuperado, e além de ser cobrado por cada palavra, pensamento e ação, tudo faria sentido, seria o reencontro consigo mesmo. Não que eu pensasse do jeito que estou escrevendo. Aliás, nunca tinha pensado exatamente do jeito que estou escrevendo, nem tinha pensado que as coisas seriam assim. Não pensava muito, não racionalizava, nem sistematizava tais pensamentos. Pensava em algumas coisas, mas sentia mais. Sentia que eu deveria ter um cuidado com cada palavra, com cada pensamento jogado ao vento. Tudo era filmado e gravado, nada escapava aos olhos da câmera da mega memória. É a imagem do tudo. A memória do tudo.
Cada detalhe, cada cor experimentada pelos olhos, cada pensamento saboreado, cada palavra ouvida e proferida seria registrada na memória do tudo. Ficava imaginando onde seria este lugar chamado Memória do Tudo. Poderia ser uma cidade, poderia ser pouco depois das nuvens (já que deveria ser um lugar leve), ou no centro da terra (como no livro "Viagem ao centro da terra", para o caso das consciências pesadas). Também poderia ser nas estrelas já que um dia me disseram que o universo era bem, muito grande. Não que eu quisesse conhecer este lugar, mas imaginava que deveria ser, de fato, muito grande para conseguir gravar cada detalhe, não só da minha vida, mas da vida de todo mundo.
Um dia entrei num museu, continuei intrigado. Outro dia fui no cinema. O cinema poderia ser o instrumento da Memória do Tudo. Mas continuei intrigado, pois sentia que nem tudo poderia ser registrado na memória, mesmo no cinema. Vi que seria praticamente impossível fazer um filme onde cada pessoa no mundo seria a personagem principal. Fazer um filme de cada um era difícil, mas percebi que, de alguma maneira, cada um fazia o filme de sua vida. Que se reconhecia na sua vida, que é desde si que cada um filmava o mundo. Também fiz (e continuo a fazer) o filme da minha vida, fiz uma memória de mim mesmo, me reconheci em mim mesmo. E percebi que nem de mim poderia fazer a Memória do Tudo. Pasmem, nem eu poderia fazê-lo. Alguém poderia? Talvez. Mas não era no cinema que veria toda minha vida. Mesmo assim, o cinema foi o que mais se aproximou de uma resposta sobre a possibilidade de uma gravação do tudo.
Continuei a tentar fazer a Memória do Tudo da minha vida e fui vendo que se quisesse realmente fazê-la levaria mais tempo para escrevê-la e pensar sobre ela do que se vivesse tudo novamente. De certa maneira descobri que viver é diferente de recordar, que o tempo da memória é diferente do tempo do viver. Seria humanamente impossível lembrar de tudo o que vivi, pois precisaria de outra vida para lembrar de tudo e outras tantas vidas se assim pensasse em escrevê-la ou fazer um filme de mim mesmo. Assim, descobri também que a gente esquece de muitas coisas que viveu, mas que de alguma maneira elas estão presentes. Não sei dizer como elas estão presentes já que esqueci delas, mas sinto sua presença invisível e constituinte de mim mesmo. Descobri, então, que escolhemos algumas coisas para lembrar e que o ato da escolha traça caminhos de pensamentos no presente-futuro. Ao escolher nossas lembranças abrimos as portas do daqui a pouco. Assim percebi que nem tudo pode ser colocado na nossa cabeça, e que ao fazermos sofremos de uma angústia de nunca chegarmos a um fim, pois não tem fim e o tudo não pode ser guardado na memória. Percebi que buscamos estratégias para não sofrermos permanentemente com tal angústia. Uma das estratégias é linearizar o tempo, é dar cronologicidade a ele, uma coisa depois da outra. Assim suportamos a dor de não capturar o tempo. Marcamos e ritualizamos o tempo. Selecionamos os eventos, damos saltos no tempo. E descobri que o tempo é um enigma.
Mas permaneceram muitas intrigas. Dentre elas uma que até hoje me complico no próprio pensar: Seria possível levar o tempo para algum lugar (como para uma cidade ou uma estrela chamada Memória do Tudo)? Todo tempo tem o seu lugar ou cada lugar tem o seu tempo? Ou o tempo está em todos os lugares? É nisso que continuo a pensar, a imaginar. Imagino um lugar chamado Memória do Tudo.
Desde a perspectiva do registro da Memória do Tudo:
Meu nome é Memos, sou Secretário Geral da Memória do Tudo. Sou onisciente, vejo tudo. Com uma grande câmera via satélite, localizada numa estrela cintilante e através de um espelho capto o reflexo de todos os gestos, passos, palavras e pensamentos da vida de todas as pessoas. Tenho a capacidade de conectar dois mundos: o mundo da vida das pessoas com o mundo da Memória do Tudo. Chamado a conectar-me com o mundo dos homens sintonizo a freqüência e aciono dispositivos de memória totais. Dali tudo capto, dali tudo registro e todas as respostas podem ser ali encontradas, basta se fazer as perguntas certas.
Fui conectado através de algo denominado pesquisa realizada por alguns personagens e algumas perguntas. Esses personagens são professores de uma escola técnica e um pesquisador em educação. Eles se reuniram algumas vezes para evocar as suas memórias de professores e assim me acionaram e me fizeram buscar muitas lembranças e imagens nos escombros da memória de cada um deles. As memórias eram evocadas através de um ritual dialógico, de escuta aberta e sensível e do testemunho de si.
A memória é acionada por perguntas, a memória é acionada por imagens e palavras. A memória também é acionada por lembranças. Na medida em que se trabalha com a memória, as lembranças puxam novas lembranças e necessitaria de um escutador infinito para tudo lembrar.
Meu trabalho aqui na Memória do Tudo é muito intenso. Sou acionado a todo momento, seja numa roda de amigos que há tempos não se viam, seja nos sonhos, nas histórias épicas, nos contos de mentira, nas lembranças de experiências de vida, em todos os lugares, em qualquer roda de conversa e bate papo. Quando sou acionado para buscar alguma informação nos arquivos da Memória do Tudo, procuro enviar resposta o mais breve possível, ser mais eficiente possível, já que existem pessoas que conseguem esconder muito bem alguns episódios vividos.
Simplificando para quem não conhece como é organizada e como funciona a Memória do Tudo, podemos dividi-la em baús. Existem os baús em que suas portas estão sempre abertas, permitindo com que o fluxo da lembrança se propague sem interrupções. As lembranças desse baú fluem livres, são incorporadas no dia a dia da vida das pessoas que dele lembram. Às vezes essas lembranças sofrem de uma megalomania épica, a imaginação amplia os episódios vividos no passado. Às vezes são contadas e lembradas tão iguais quanto vividas que chegam até a não fazer muito sentido para quem as ouve, mas sempre recheadas de sabor para quem as conta e as lembra. Existem também os baús em que suas portas permanecem muito bem cadeadas. Tão cadeadas que as chaves possivelmente foram tão bem escondidas que até mesmo o dono das memórias as torna irrecordáveis, ilembráveis. No baú da memória são guardados objetos, projetos, sonhos, odores, cores, imagens, brinquedos, relógios, pessoas, frases, medos, sabores, escolhas, etc., na forma de Cartas. No baú é guardado tudo. Até mesmo o esquecimento.
Quando abrimos um baú da memória temos que ter alguns cuidados. O primeiro cuidado é não desorganizar ou embaralhar as Cartas das lembranças. O segundo cuidado é no manuseio das Cartas. O terceiro cuidado é no envio das Cartas até o dono das Memórias e o quarto cuidado é não perder a chave do baú. Sei que tenho uma responsabilidade grande na abertura dos baús. Muitos dizem que sou muito chato de tão organizado, mas é a minha função.
Cada um dos baús tem uma forma própria de indexação e organização das Cartas de lembranças. Alguns baús são muito desorganizados, ficando difícil de se encontrar algumas lembranças. Outros baús cheiram a mofo, exalam um odor de guardado e naftalina já que são pouco abertos, até intocados. Outros são úmidos, com pitadas de sal pelas lágrimas derramadas. Estes últimos podem ter gosto de dor, de saudade, de prazer.
A cada minuto são inseridas novas Cartas de lembranças nos baús velhos ou, em virtude dos acontecimentos, são criados novos baús. É possível de se dizer que os baús estão sempre abertos para novas lembranças, mas podem permanecer trancafiados em caso de querermos recuperar as velhas lembranças. Inserir Cartas de lembranças é fácil, retirá-las nem sempre.
Não é meu papel organizar e indexar as Cartas da lembrança. Desempenho uma função, diria, de farejador das lembranças no baú. Sou responsável pelas chaves do baú e pelo envio das Cartas quando solicitado. Cada lembrador organiza as Cartas da lembrança e os baús da memória do seu jeito. Procuro não embaralhar as cartas e respeito a organização desorganizada de cada um, já que se embaralho a organização desorganizada crio um verdadeiro caos em cada um, inclusive podendo romper com o limiar da sanidade e loucura/desatino de cada um.
Além de, muitas vezes não conseguir abrir alguns baús, também certas vezes não consigo encontrar muitas das Cartas, bem como é comum encontrar Cartas repetidas num mesmo baú e em baús diferentes. Existem Cartas predominantes, chegando a existir diversos baús com as mesmas Cartas, e até baús só de uma Carta.
O envio das Cartas é feito através de uma tecnologia via rádio telepático - freqüências e fluxos energéticos. O envio é feito com "quase" total segurança. As Cartas, com o passar dos tempos no baú, ganham uma certa vida própria. Já soube de alguns casos em que na fração de segundos entre o envio e o recebimentos das Cartas algumas lembranças se extraviaram ou, acredito, tenham resistido chegar até o destino sugerido.
Também é comum não encontrar as chaves dos baús da memória. Tenho um gigantesco molho de chaves em mãos para abrir todo e qualquer baú. No entanto, alguns baús, mesmo tendo a chave compatível, não permitem sua abertura, eles requerem outras chaves de acesso. Existem alguns segredos de acesso. Existem alguns mistérios e enigmas que somente o dono das memórias tem condições de desbravar e se aventurar nos abismos, em alguns caminhos e trilhas, vistos como verdadeiros labirintos da memória.
Desde os baús e labirintos da memória das personagens:
Os caminhos e labirintos da memória são evocados através de um ritual de diálogo entre as personagens, de uma escuta sensível. Narram-se, cruzam-se existências. Revelam-se trajetórias e surpresas de docências. Viram-se as Cartas sobre a mesa e acionam-se lembranças.
Num lugar fora do tempo o destino quis que oito personagens se encontrassem. O acaso contribui também para o encontro, mas se responsabilizou principalmente em segurar o tempo, em parar o relógio. Já a circunstância, sabendo do encontro inusitado, se fez presente e trouxe para o encontro uma imagem para compartilhar com todos. A imagem era algo surrealista: uma foto do espelho, onde todos poderiam ver o reflexo do encontro consigo mesmo.
Com o tempo parado e com a imagem surreal sobre a mesa os personagens saboreiam em uníssono a presença visível do instante eterno da lembrança de si. Como um espelho a imagem reflete a si mesmo, como o difícil exercício de ficar se olhando nos próprios olhos. O olhar nos próprios olhos faz cada um sair de si mesmo e ver a própria vida em movimento como que acessando o Mundo da Memória do Tudo. E reconhecendo-se em si, cada personagem projeta sua memória para lembranças de um passado-presente-futuro.
Sentados à mesa circular estão Memos - secretário da Memória do Tudo - , Leafar - o perguntador e o escutador -, Rameda, Irolf, Odlanor, Odracir, Yendis e Ordnas - os lembradores e contadores. No centro da mesa a imagem surreal e circulando ao entorno da mesa a invisível presença dos fluxos energéticos da lembrança de si. Também compõe o cenário cinco cartas-perguntas a invocar e acionar os baús da memória, transfigurada em cinco cartas-lembranças.
Cada um dos lembradores reage diferentemente com a imagem surreal posta no centro da mesa, mas todos se conectam com a sua memória. O fluxo energético da lembrança ganha forma, cor, odor, transfigurando a imagem sobre a mesa. As lembranças ganham forma de pensamento e se manifestam na voz, na história contada, na vida narrada.
Ao lembrar, cada personagem recolhe os cacos de sua memória. Ao recolhê-los produz uma nova vida, um novo jeito de ver a si e o mundo. Ao recolhê-los reconfigura o tempo de uma vida. E ao reconfigurar o tempo de uma vida desmancha e faz fluir a linearidade dos fatos e episódios. Assim como no Filme "Amnésia"[1], onde o tempo não linear - visibilizado pela perspectiva dos eventos acontecerem de trás para frente - produz lembranças que impulsionado pelo presente, retorna à origem, como que querendo reencontrar-se consigo mesmo. A busca incessante de reencontrar consigo mesmo.
E por falar em encontros e reencontros, penso na despedida. Despedida de um texto, despedida de um encontro provocado por um texto. E como no filme "Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas"[2], penso na bela despedida de quem, ao contar uma história, se encontra com suas próprias máscaras, com todos os personagens de si mesmo e com todos os outros personagens, que hoje não sendo mais os mesmos, se fazem presença viva na lembrança de outrora.
[1] Filme: Amnésia (Memento). Direção de Cristopher Nolan. EUA, 2000.
[2] Filme: Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas (Big Fish). Direção de Tim Burton. EUA, 2003